Asas de cabedal

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Vítor Encarnação

Um homem não consegue entender a relação umbilical que uma mulher estabelece com a sua mala. Ao vê-la entrar numa loja, é-lhe impossível, talvez devido a razões genéticas, medir os níveis de dopamina, imaginar o enfatuamento, compreender os mecanismos neurológicos que atravessam o cérebro da mulher e a deixam extasiada à beira das prateleiras.
E são poucos os homens que se atrevem a invadir aquele mundo místico, principalmente se for em época de saldos. A maioria fica à entrada como ateus à porta de uma igreja.
Uma mala de mão talvez configure a maior das diferenças existenciais entre homens e mulheres.
Cava um abismo, traça uma impossibilidade de entendimento. Para um homem, nada é mais confrangedor do que, num qualquer centro comercial, segurar a mala da esposa enquanto esta vai experimentar um vestido. São minutos absolutamente aterradores. Como não sabe como lhe há-de segurar, agarra-a como se agarra num saco plástico com asas. Aquilo não se fez para o seu corpo e rezando para que não passe ninguém conhecido, o objecto cai-lhe sem graça das mãos.
Perante uma mala de mulher, um homem nada acha, confunde-se, é um ser perdido. Tacteia, apalpa, mexe, afasta, mas os olhos não vêem, os dedos nada tocam, seja um isqueiro, uma chave, uma caneta. Mergulhar as mãos no conteúdo da mala de uma mulher é como mergulhar num poço escuro. É preciso vir à tona várias vezes e gritar que não se encontra o que se procura. Está aí junto aos lenços de papel, diz ela impaciente. Os homens são todos iguais, não sabem procurar o que não se vê logo, seja em malas, seja em corações. São ambos labirintos onde os homens se perdem, aflitos e tontos. O mais fácil seria despejar tudo para cima de uma mesa, apontar um candeeiro e tirar as indefinições da penumbra. As mulheres sabem viver dentro das malas, os homens não. Os homens trazem tudo nos bolsos das calças porque têm medo de o trazer junto ao peito.
Quando uma mulher compra uma mala, que contas faz ela à vida para comprar esta e não aquela? Que raciocínio ou que emoção a leva a optar por uma maior ou por uma mais pequena, com mais ou menos bolsas? É uma questão de estilo ou de existência?
A mala de uma mulher é um segredo guardado com um fecho de correr.
É um peso que ela traz aos ombros a combinar com os sapatos, a verdadeira cobertura para a nudez, um mistério com fivelas, um kit de sobrevivência urbana.
A mala de uma mulher é o resumo da sua vida. A sua síntese. O rímel. A fotografia dos filhos. A fotografia dos cães. Às vezes do marido. O telemóvel. Cansaço. As chaves de casa. Um livro. O batom. A carteira. Um poema gasto. Moedas para o carrinho do supermercado. A lista das compras.

A mala de uma mulher é o seu coração com asas de cabedal.

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