Há cinquenta anos, o dia 24 de abril calhou à quarta-feira, que, por acaso, era o meu dia de folga. Saíra às oito da manhã e como sempre cumpri o ritual do desfardar, vestir a roupa civil e dirigir-me à tasca do João, na Avenida Duque D’Ávila, em Lisboa, quase em frente ao Hotel Príncipe, o meu local de trabalho.
Nesse minúsculo estabelecimento, uns meses antes, tinha presenciado a prisão de Hermínio Palma Inácio e seus camaradas, quando se preparavam para assaltar o Banco de Angola, que ficava na esquina subsequente a este estabelecimento.
Foi um episódio e peras, mas já aqui foi contado. Hoje quero falar-vos dessa porta chamada LIBERDADE que se nos havia de escancarar na madrugada seguinte.
Ao tempo, contava 18 anos e um inusitado número de sonhos por cumprir. Vivia em casa de meus pais, num subúrbio lisboeta de que nunca gostei, mas como era o que se podia arranjar lá fui gramando a pastilha.
Acordei pelas três da tarde e, como sempre, depois de duchado e perfumado, fui até à cidade, onde entre cigarros e jogatanas de bilhar lá gastava a nota de cinquenta (escudos!) que tinha metido de vale à caixa.
Já não me lembro onde ou o que jantei, mas dei comigo à porta do café Monumental, a conversar com um amigo. Eis senão quando chega a “ramona”, encosta à porta do estabelecimento e foi tudo dentro.
Por sorte. Por estar de folga. Por milagre. Porque não me viram ou porque não lhes apeteceu levar-me, não cumpri mais uma noite de xelindró, coisa a que já estava habituado. Tanto mais que, em outras vezes, já me tinha tocado esta humilhação, paradigma do estado policial em que vivíamos. (Mal eu sonhava que já estava em marcha o movimento que determinava acabar com o deboche instalado.)
Já depois da meia-noite sigo para o Hotel Príncipe. Vou fisgado na ceia que eu e os meus companheiros fazemos a cada noite que passa.
Estão de serviço o Carlos Correia e o João Serras. Como é o meu dia de folga, toca-me cozinhar. Apesar dos cozinheiros esconderem as chaves do frigorífico, damos sempre com elas e tratamos de nos banquetear, caso a ceia por estes deixada não ter aspeto comestível.
Por essa altura sintonizávamos sempre o Rádio Clube Português (RCP), onde escutávamos o nosso programa favorito, “A Noite é Nossa”, da autoria de Rui Castelar. Como deixámos de o ouvir repentinamente, ainda tentámos ligar para lá, mas o telefone estava permanentemente interrompido.
Quando nos preparávamos para arrumar a loiça, fomos surpreendidos com fortes pancadas na porta envidraçada da entrada principal. Do outro lado, uma dezena de soldados armados de metralhadoras e comandados por um oficial de pistola em punho insistiam em entrar. Ao franquearmos a entrada, irromperam hotel adentro, o que nos deixou ainda mais estupefactos. Diria mesmo: petrificados! Entretanto, a rádio começara a passar marchas militares, o que nos causou verdadeira apreensão.
Os militares pedem-nos calma. O oficial sossega-nos, dizendo que não é nada connosco. Apenas que lhe apontemos o caminho para o terraço. Sigo à frente para lho indicar. Aí chegados, e seguindo as ordens do graduado, ocupam os postos em posição de franco-atirador com vista privilegiada sobre o que se passa nas ruas circundantes, que fica a poucas dezenas de metros do Quartel-General da Região Militar de Lisboa. À pergunta sobre o que se estaria a passar, encolhiam os ombros e diziam: “Também não sabemos. Só cumprimos ordens!”
O tal graduado (julgo que o aspirante Teixeira) apenas pedia calma e cooperação. Apesar de não nos querer adiantar nada, entredentes lá foi dizendo que era um levantamento militar com vista a derrubar o governo, mas que guardássemos segredo. Olha…olha! Guardar segredo de um acontecimento daquela envergadura. Está claro que não cumprimos. A adrenalina era tanta que só queríamos partilhar este empolgante momento com os nossos amigos.
Ao tempo namoriscava uma telefonista da Rádio Marconi, outro dos pontos estratégicos a tomar. Quando os soldados lá chegaram, não beneficiaram do efeito surpresa porque, entretanto, este vosso amigo já tinha metido a boca no trombone e telefonado para a locatária do meu coração, que fez o favor de espalhar a notícia.
Regressemos ao Hotel Príncipe, onde os acontecimentos fluem em catadupa. Na telefonia, o primeiro comunicado: “Aqui posto de comando das Forças Armadas, pedimos à população que se mantenha em suas casas (…)”. Entretanto, já tínhamos quebrado o gelo com os militares encarregados de defender agora o nosso posto, quer no terraço quer noutras posições, como no túnel de acesso à porta de serviço.
Aí pelas 4h30, o Abílio Padeiro, alheio ao que se passava à sua volta, prossegue a sua entrega rotineira daquele que se designou chamar nosso de cada dia. O pão.
A sua Ford Transit invade como sempre o passeio numa manobra algo assustadora repetida vezes sem conta. Abílio saca o cabaz com o pão encomendado e, com os braços elevados aos céus, segura o cesto que transporta ao ombro. Nesse momento, um dos soldados, suspeitando desta movimentação, intercepta o pobre padeiro com uma ordem de mãos ao alto, ao que o Abílio responde – “E onde é que você acha que eu as tenho?”
Risota geral, estupefação do padeiro… e o vinho e a cerveja não paravam de correr. Ainda sem lhe conhecermos o desfecho, celebrávamos o mais belo dia das nossas vidas. O dia que a partir desse se passou a designar por “Dia da Liberdade”.
O meu colega João Serras, que regressara do Ultramar havia poucos meses, e já com os vapores etílicos a comandar as hostes, desafia um dos militares a montar e desmontar a sua G3 em quatro minutos, o que este aceitou, até porque a aposta incluía mais bebida.
Bem, desmontar foi fácil; mas o que sei é que eram sete da manhã quando me fui embora e a arma ainda não estava montada.
No caminho de regresso a casa tento dissuadir os meus concidadãos de irem trabalhar. Explico que está a decorrer uma revolução que nos há-de retirar as algemas do cinzentismo em que todos vivíamos. É claro que sou mandado para casa, vaiado e aconselhado a ir curti-la para outro lado.
Quando chego a casa, transmito a boa nova à minha mãe, que sem perceber o que se passa desata a chorar e de mãos cruzadas elevadas às alturas me diz: “Eu já pressentia que andavas metido na política. Ai filho que te desgraças!” Lá lhe expliquei que eu não tinha nada a ver com aquilo, mas que estava muito contente por tal estar a acontecer.
É claro que não dormi. Era impossível dormir num dia assim. Por isso, vim para a rua continuar a celebrar a LIBERDADE que se pressentia e que tinha tido o privilégio de viver por dentro.

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