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Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Vítor Encarnação

Ainda o tempo não lhe tinha amadurecido o corpo e já ele lhe torneava a carne nua com mãos de homem feito.
Reparara nela quando um dia voltava do trabalho com o corpo a cheirar a terra e a boca a saber a cervejas. Ela, bonecas arrumadas aos dez anos, primeira menstruação aos doze, peito firme aos treze, escola abandonada no sétimo ano, olhos de mel, lábios de ameixa, cabelo dado ao vento, rosto da cor do trigo maduro, formas redondas, vestido curto, pernas de seda, tinha dezasseis anos e vinha das compras. Quando ela passou na rua como uma borboleta com as asas em brasa, ele acendeu um cigarro e ateou tabaco e desejo. Nesse primeiro dia nada lhe disse, só pensou o que os homens que nunca leram Platão pensam quando se excitam. Bovino, marcou-a logo ali com o ferrete da volúpia.
No segundo dia, quando se cruzaram no passeio estreito, ele disse-lhe coisas que os homens que nunca leram Eugénio de Andrade dizem às mulheres e que algumas mulheres preferem escutar a escutar palavras de Eugénio de Andrade. Ela não baixou os olhos nem teve vergonha das palavras que se metem logo por dentro da roupa. Pelo contrário, pôs mel na colher gulosa que ele trazia no olhar.
Estava farta de estar em casa. Tirando as telenovelas, não havia mais nenhum sonho dentro daquelas quatro paredes. Queria fugir às proibições dos pais, à loiça, ao ferro de engomar, à roupa comprada nas bancas da feira. Queria ter automóvel e passar junto das esplanadas de vidros abertos e rádio ligado, queria ir ao Algarve, à Expo 98, ir ao restaurante e pedir sobremesa. E além disso, já se sentia mulher que chegasse para se entregar a um homem calejado.
E assim, pouco tempo depois, num sábado à noite, a Primavera da verdura dela foi engolida pelo suor do Verão dele. Sem mãos dadas, sem poesia, sem cinema, sem dia dos namorados. Debaixo do peito dele passou logo de flor a fruto, de ovo a pássaro, de erva a pasto, de orvalho a pó. Talvez até o amasse – como se ama o carcereiro que nos abre a porta da prisão.
Quando deixou a casa dos pais já ia grávida de cinco meses e a Expo já tinha acabado. Vivia agora em duas húmidas assoalhadas numa das pontas da vila e pouco saía, a não ser para ir às compras e às consultas ao centro de saúde. No dia em que a filha nasceu, Albufeira era ainda uma miragem.
E assim viveu dez anos, quatro filhos nos braços e um homem entre as pernas, esperando as cartas da segurança social no fim do mês, esperando as telenovelas, esperando que nessa noite o seu homem não tivesse vontade.
Ela já não tinha. Queria agora voltar atrás, regressar ao ponto de partida, fazer de conta que ele não a vira nesse dia. Apesar de não perceber de gramática, queria usar o terceiro condicional e recomeçar, reinventar o destino, dar o mel a outro.
Como não podia mudar o tempo, mudaria ela. Pintou os lábios da cor das ameixas suculentas, pôs fermento no trigo da pele e vestiu o vestido curto para que outros homens fizessem deslizar os olhos pelo cetim das pernas. A juventude interrompida bateu-lhe à porta do espelho do quarto e ela deixou-a entrar.
Neste Outono, um desejo serôdio desponta e o corpo dela quer ser Primavera outra vez.

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