É tarde, agora

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Vítor Encarnação

Há coisas que não sabemos fazer em vida. Supomos que o mundo é apenas feito de realidades concretas e tudo se resume a planos, projectos e realizações materiais. Sobranceiros, adiamos as emoções, criamos a ilusão de que o futuro nos dá importância, julgamos até que temos todo o tempo do mundo e que dominamos o espaço, as horas, o corpo, a existência toda.
Nada nos falta e porque nos parece que somos eternos, pequenos deuses feitos de carne e egoísmo, tudo fica para depois.
Amanhã logo digo, amanhã logo faço, amanhã logo amo.
E depois pode ser demasiado tarde. E depois é tarde.
Faltaram-nos palavras, falhou-nos um abraço, impedimos um carinho, reprimimos um elogio, evitámos um beijo, prendemos uma ternura, travámos um obrigado.
É tarde agora. E apenas agora, tragicamente apenas agora, assomam à boca as palavras não ditas, detidas pela barragem do raciocínio, do adiamento e da falta de disponibilidade. E são tantas as palavras aflitas que querem rebentar os diques e galgar o cimento do tempo perdido que apenas conseguem sair pelos olhos. Em soluço, desfeitas, vão despejando sal e raiva.
E apenas agora, tristemente apenas agora, os braços querem envolver o peito para num aperto supremo, definitivo, recuperado, poderem sentir o calor do sangue do nosso sangue. Desesperado, o dono dos braços fica apenas e só com as recordações nos braços.
E apenas agora, inutilmente apenas agora, os dedos vão à procura dos cabelos, de uma mão, de um ombro, da cara, de qualquer parte. Qualquer ínfima parte, qualquer pedacinho de pele, serviria agora para fazer uma festa, um afago, uma carícia. Qualquer toque, por mais leve que fosse, preencheria o vazio.
E apenas agora, dramaticamente apenas agora, libertamos o elogio e com umas asas a bater de orgulho pomo-lo a voar no céu para que todos o vejam. E é bonita a memória em forma de pássaro.
E agora, irremediavelmente apenas agora, é que a minha infância agradece do fundo e do princípio de mim. Agradece a camisola de guarda-redes, os chocolates, os sorrisos doces como rebuçados, as moedas de cinco escudos, os passeios, a presença serena e boa. Lá nos primórdios de mim, a minha infância chora agora por se ter esquecido de um beijo.
E agora, erradamente apenas agora, lembro-me de actos tão simples que ficaram suspensos no meu feitio de deixar para depois. Um petisco a que não fui, um copo que não bebemos, um pedido ao qual não respondi, uma teimosia que mantive. Não soube ter toda a ternura. Prendi-a dentro de mim. Agora solto-a, mas ela anda perdida porque já não o encontra.
E agora, apenas agora, em cima da terra para onde foi, arranjei tempo para pensar. Arranjei tempo para sentir que passamos todos pela vida uns dos outros quase sempre em vão, fechados numa concha, convivendo de raspão, sem tocarmos a essência de ninguém. Arranjei tempo para saber que tudo pode acabar de repente e nós já não vamos a tempo de nada.
A morte faz-nos pensar, a maldita.
Eu sei que agora é tarde.
Ainda assim, obrigado por tudo.
<p align=”right”><i>Para o meu tio</i></p>

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