O Sabor da Manhã

Napoleão Mira

Escritor

Gosto da manhã e do silêncio da manhã.
Gosto do cheiro da manhã e da luz da manhã.
Gosto das manhãs lavadas, cheirosas, mas também gosto delas ao fim-de-semana desgrenhadas, despenteadas, preguiçosas.
Gosto da manhã servida em taça de maré-baixa, e de caminhar na praia em cima do tapete de espuma com que as ondas demarcam a areia.
Gosto dos pensamentos ao alvorecer. Límpidos. Extravagantes. Fazíveis.
Gosto do cheiro do estrugido matinal que, vindo lá da cozinha do restaurante vizinho, me invade as narinas sem pedir licença.
Gosto do som matutino, sincopado, da vassoura com que a senhora da limpeza varre o solo em frente do meu local de trabalho, deixando-o imaculado. Beijável, mesmo.
Nesta manhã voa-se-me a vontade de estar para outras latitudes. E das terras mais a sul, passo num ápice à serenidade madrugadora da minha aldeia.
No pensamento que me invade, espreito pelo postigo a vida que lentamente se desembrulha. Os corpos acoitados erguem-se para mais uma jornada de labuta e a vida é um presente, uma dádiva, um acontecimento irrepetível, apesar de podermos pensar que ontem foi igual a hoje, e amanhã igual a sempre.
Gosto da sinfonia matinal da minha pátria. Os primeiros passos apressados que logo, logo, se perdem na distância. As conversas de soslaio de que escuto apenas irreconhecíveis fragmentos. As primeiras badaladas do sino da igreja, diapasão por onde se afina a vida aldeã. O inevitável galo que canta a horas desavindas, inconcebíveis, “inconfiáveis”. A estridente corneta do padeiro que me trás à porta a fragrância única do pão acabado de acabar de cozer.
No silêncio das alturas, entre o chão que pisamos e o azul que almejamos, passa um balão; não é do João, é a passarola do Hugo, máquina voadora, de onde se olha o mundo como os pássaros o veem.
Lá, atrás do outeiro, cresce a olhos vistos uma bola grávida de fogo.
Ao presenciar o seu nascimento, sinto um estremecimento, uma espécie de frenesim.
Uma coisa entre mim e eu.
Uma forma de agradecimento interior.
Uma prece ao que está para lá do meu entendimento.

O sol é que alegra o dia,
pela manhã quando nasce.
Ai de nós o que seria,
se o sol um dia faltasse.

Ilustração sonora em forma de cante de uma paisagem onde o astro-rei, imponente, dominante, determinará, não tarda nada, o recolher obrigatório à fresquidão das casas povoadas de silêncio e escuridão.
Gosto das matinas estivais, frescas e luminosas, mas também amo as invernais com ventanias a assobiar pelas frestas e chuva a retinir no telhado.
Num passe de mágica deixo-me levar para essa frequência temporal onde a escrita se me torna mais fluída e produtiva.
Das manhãs de inverno rigoroso, gosto especialmente de acender o lume a poder de sopro de canudo. Não sei porquê, mas estas coisas dão-me mais prazer se as fizer na solidão da minha companhia.
Gosto de pensar que o canudo, por onde ruborizo as brasas, pertenceu à minha avó materna, Francisca da Encarnação de seu nome e para que conste.
Gosto que este artefacto me transporte para o seu colo, lhe sinta o cheiro e lhe percorra com o meu dedo de petiz os rios de veias que lhe povoam a magreza das mãos nuas. Gosto de lhe ir buscar o cesto da meia e de me perder na destreza com que manuseia agulhas e linhas que, por artes mágicas, vão ganhando a forma de um pé.
Gosto definitivamente das manhãs borralheiras, que tal como a gata, devem regressar incógnitas ao seu território temporal quando soarem as doze badaladas do meio-dia.
E gosto das manhãs mulheres, insinuantes, provocadoras, das que retiram o til ao seu nome, como se se despissem de preconceitos. Ou então, das manhãs mandrionas, namoradeiras, com olhos feitos amêndoa e beijos a saber à noite passada.

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