O princípio da mulher é o sangue

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Vítor Encarnação

Na aula de Ciências Naturais,
no desenvolvimento do sumário
sobre o sistema circulatório,
o professor não lhe disse que um dia
o sangue abandonaria
o caminho dos vasos,
das veias e das artérias,
e iria desaguar a dois palmos
diagonais
abaixo do coração.
E foi a mãe,
sentinela
dos mais brandos
rumores corpóreos,
vigia do mais leve rubor,
guardiã do tamanho da saia,
que lhe explicou
que esse corrimento
é um calendário com folhas
empapadas em silêncio tinto
que o corpo rasga
todos os meses
para anunciar
a maturação.

O princípio da mulher é o sangue.
É ele que parte o lacre da infância.

E enquanto
ela faz os trabalhos de casa,
o tempo, esse escultor da idade
e seus prenúncios,
com os seus dedos castanhos,
ou mais escuros,
ou mais claros,
escondidos
no estojo dos lápis de cor,
começa a desenhar um
triângulo
pubescente.
A puberdade,
é um torno que arredonda a carne,
ensaia contornos,
projecta volumes,
toma massas

e esmaga as bonecas.

Quando tudo estiver pronto,
o umbigo
será o centro do diâmetro
desenhado por um compasso
com hastes de agitação
e desejo.
E quando a pele
que fica dentro dessa circunferência
começar a ganhar vida,
o urso de peluche

morre
durante a noite.

Foi coisa de coração
– obviamente mais da parte dela
do que propriamente do urso.

A porta do quarto,
dantes
sempre aberta
por causa do papão,
fecha-se agora para não deixar sair
um bicho de veludo
com unhas de cetim
e patas de fogo
que faz ninho nos cantos
do quarto, nas gavetas,
debaixo da cama,
no escuro do guarda-fato,
na forro do pijama,
no reflexo do espelho,
se alimenta de calor e se
multiplica em vários bichos
de veludo com unhas de cetim
e patas ainda com mais fogo
que sobem para a cama
e por lá dormem com ela.

Sem que o pai desconfie.

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