Gracias a la vida…

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Rui Sousa Santos

médico

Quero falar de idosos e de famílias, hoje. De comportamentos, de esquecimentos, de abandonos, de solidão, de isolamento. De apoios, de projectos, de melhor aproveitamento de recursos, de alternativas.
Tenho alguma dificuldade em falar de idosos, assim, metendo num mesmo cesto uma enorme e heterogénea massa de pessoas que, em comum, têm, apenas, o facto de terem mais de 65 (?) anos. Afinal, se falamos da infância e dos seus problemas sociais falamos de crianças em risco. Falemos, então também, de idosos em risco. Que, dizem algumas estatísticas na sua crueza massificadora, constituem cerca de 12% do total deste escalão etário.
E quem são estes idosos em risco, a que grau de que riscos estão, afinal, sujeitos, de que riscos se trata?
Em primeiro lugar de idosos, ou de casais de idosos, que vivem sozinhos e em locais isolados. De pessoas com doença crónica, de algum modo limitativa da capacidade de se bastarem a si próprios. De pessoas pobres, sem recursos materiais que permitam uma vida minimamente digna nos seus aspectos mais básicos. De pessoas com carências habitacionais significativas. De pessoas com problemas sérios de saúde mental, agravando problemas somáticos muitas vezes pré-existentes. De pessoas dependentes, sem rede social de suporte, informal que seja. De pessoas que não têm condições globais para defenderem os seus próprios interesses.
Mas também de pessoas idosas que têm família, embora por vezes tal não se note. Pessoas que foram transformadas, para os seus familiares, em pesos mais ou menos mortos antes de o serem. Pessoas tornadas, em vida, em cadáveres adiados, a que é retirada qualquer capacidade de autodeterminação, quer no que respeita à maneira de viver, quer na gestão dos recursos materiais que possam ter. Pessoas que são encafuadas, é o termo, em lares e pessoas que deles são retiradas, contra vontade, porque as parcas centenas de euros da reforma dão jeito para compor o orçamento familiar. Pessoas que são negligenciadas, por vezes maltratadas, vezes outras vítimas de violência aberta. Pessoas que são abandonadas em hospitais, por famílias que delas não querem mais saber. Pessoas internadas em instituições, que, ao longo de anos, nunca receberam uma simples visita.
As instituições de solidariedade e as instituições de saúde assistem, diariamente, a situações de negligência e de abandono. Claro que o fenómeno se verifica numa minoria de situações, mal feito fora se assim não fosse. Mas é um fenómeno alarmantemente crescente, gerando-se, em muitas famílias, a convicção que é ao Estado e às suas instituições que cabe, em primeira linha, a responsabilidade de encontrar soluções para os problemas dos seus velhos. Que o diga a Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, com os problemas sentidos no escoamento de situações sem solução a jusante dos problemas.
Necessitamos de fazer a provedoria dos interesses dos idosos solitários, dos idosos abandonados, doentes, dependentes. De ajudar as famílias que como tal funcionam, ajudando-as a perceber que um idoso dependente não é, forçosamente, um estorvo e que pode ser cuidado no domicílio, se soubermos fazer o ensino devido, se mobilizarmos apoios, se fizermos a rede social de suporte. Saúde do idoso é, também, isto. Há muitos idosos autónomos e saudáveis. Ainda bem. Mas criemos condições para que os outros não fiquem com os olhos marejados de lágrimas se, numa rádio qualquer, ouvirem uma Violeta Parra, a cantar magistralmente <i>Gracias a la Vida, que me há dado tanto…</i>

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