Viajar é também planar, desabotoarmo-nos da rotina e conjugar amiúde o verbo partir.
Viajar é soltar a alma. É libertar o ser aprisionado que vive em nós e abalar. Ou como diria Chico Buarque: “o que eu quero é correr mundo, correr perigo”.
Desta feita, viajamos num apertadíssimo minibus a caminho do norte do Camboja. Até ao nosso destino final serão seis ou sete horas de viagem. Uma longa sessão de fisioterapia rodoviária.
Contava com essas seis a sete horas de viagem, com o que não contava era com o estado das estradas. Ou será que lhe devo chamar campo minado?
Logo que saímos de Phnom Pehn começaram as obras na estrada. Tudo bem. Estão a melhorar as vias. Inferi.
Os quilómetros foram avançando e os trabalhos também. Voltei a remoer que esta era uma obra de vulto, visto já termos cumprido mais de cinquenta quilómetros e a estrada por onde circulamos ser um permanente estaleiro.
Uma nuvem de pó persegue-nos desde o início da viagem mal nos deixando ver o que se passa à nossa volta.
Conduz-se a toda a largura da via, como se por magia tivessem abolido as regras do trânsito. Ultrapassa-se pela direita, para logo em seguida se passar para o lado contrário da futura estrada num ziguezaguear assustador. Aqui, a única regra que se respeita, é a da sobrevivência.
Já tinha ouvido falar das longínquas viagens por picadas africanas. Agora já sei como é essa experiência, só que, desta feita, por esta interminável picada asiática.
O motorista, presumo que cumpra este trajecto diário e o faça “na desportiva”. Assim como quem tenta bater um qualquer record de velocidade ou de acerto no buraco, ou então, do maior número de ultrapassagens pela direita.
Primeira paragem. O condutor saca de uma pistola de ar comprimido e trata de limpar filtros e motor. Dentro do habitáculo, sai uma nuvem de pó que afasta todos os presentes. Digo isto só para ilustrar o cenário onde estou inserido.
Já quando repunha os filtros no lugar devido, abordei-o no sentido de saber se as obras iriam continuar por muito mais.
Descarregando as últimas pistoladas no filtro que tinha na mão, sorriu- me e disse-me no seu inglês sem erres: All the way sil!
Olhei para o relógio e mentalmente tentei preparar-me para o que se seguiria. Mais cinco horas de tratamento a que podemos chamar buracoterapia!
Regressámos ao minibus e ao cenário de guerra que era aquela infindável língua de terra a que me habituei a imaginar como se fosse uma estrada.
De tantos em tantos quilómetros, máquinas e homens vão dando forma de estrada a este inferno de pó e suor.
Para matar o tempo dou comigo a pensar porque razão levar a cabo tão importante obra de uma só vez?
Se fosse uma nova estrada, tudo bem! Mas esta é feita em cima e ao lado da existente, não respeitando populações ou mesmo culturas. Imagino este lugar na estação das chuvas!
Viajar também é isto. Capacidade de sofrimento e doses paquidérmicas de paciência.
Sentados no banco traseiro, penamos a triplicar. A suspensão da viatura há muito que se finou. Em cada lomba ou buraco que pisamos somos levantados do nosso lugar.
Numa desses buracos mais profundos, quase bati com a cabeça no tejadilho e, na viagem descendente, bati com o rabo numa quina afiada que me partiu o visor do telemóvel.
Por esta altura já só queria chegar. Esgotara o meu plafond de paciência, mas ainda faltavam uns bons 100 quilómetros.
Ao nosso lado, um americano expatriado e habituado a estas andanças asiáticas, dizia-nos ser esta uma nova experiência.
Os derradeiros quilómetros foram passados a consultar o relógio a cada cinco minutos, mais perto da cidade a cada três e, já com a cidade à vista, de minuto a minuto.
Finalmente chegados, fizemos o caminho para o nosso local de pernoita em tuc-tuc enviado pelo hotel. Nesse trajecto, uma curiosidade por estas paragens: um restaurante em Siem Reap chamado Casa Porto, especializado em cozinha portuguesa.
Tenho de ir lá espreitar, ou quiçá comer, para saber a que sabe a comida portuguesa confeccionada com os condimentos destas paragens.
CRÓNICA DE VIAGEM
[I]De Mochila às Costas Pelo Vietname e Camboja.[/I]