Viagem ao Japão (VIII)

Sexta-feira, 5 Agosto, 2022

Napoleão Mira

Escritor

Para chegar de Osaka a Koyasan, tivemos de mudar muitas vezes de transporte. Primeiro andámos de metro, depois de comboio, de seguida um novo comboio, mais à frente uma espécie de funicular, ou elevador se preferirem e, por fim, autocarro. Este, que nos conduziu ao destino final, fá-lo por uma estrada serpenteante onde só podem circular autocarros.
O impressionante neste trajecto é que saíamos de um para entrar noutro transporte e não me recordo de esperarmos mais de dois minutos pelo transporte seguinte, e isto fora dos grandes centros onde existem de uma forma quase sufocante. Ou como diria o meu falecido pai: “Ainda não desapareceu o cu dum, já está aparecendo a cabeça doutro!”
Outro exemplo de civilidade e de conquista social é o facto de, por todo o Japão, não haver a prática da gratificação monetária, gorjeta, propina ou, como se diz na minha terra, melhadura.
Enquanto nos Estados Unidos se não deixarmos no mínimo 10% do valor da conta quase somos enxovalhados pelo empregado, mesmo que o serviço dele tenha sido uma bosta. Pelo contrário, no Japão se deixarmos um valor extra no final da conta vêm atrás de nós para nos devolver o dinheiro.
Japonezices, dir-se-á! Eu chamo-lhe verticalidade.
Regresso de novo ao nosso transporte de todos os dias e à magia da eficiência chamada metropolitano de Tóquio.
As linhas são mais que as mães com ligações em quase todas as estações para que a cobertura do território seja eficaz e competente.
O funcionamento deste transporte desaconselha de todo a propriedade do automóvel que, pelo preço das tarifas dos táxis, nos indica que terá a ver com uma política de não incentivo à aquisição de veículo próprio.
Depois as carruagens são modernas, cómodas, silenciosas e com uma informação em duas línguas – japonês e inglês – que facilita, e muito, a vida do viajante que não domine a língua local.
Os passageiros comportam-se de forma cordial, educada e respeitosa, cedendo lugares a quem deles necessite sem haver necessidade de recorrer aos lugares indicados por lei.
A única coisa que me surpreendeu foi o mergulho total no universo dos smartphones, como aliás já escrevi.
Se de início nos assusta o labirinto de linhas, ao fim de dois ou três dias já se domina o “mega mapa” como se do metropolitano de  uma cidade mediana como Lisboa se tratara.
Estava estipulado no roteiro passarmos uma noite num mosteiro em Koyasan. Fico sempre entusiasmado com estas surpresas que requerem alguma adaptação. No caso presente, a ausência de casa de banho privativa era o meu maior obstáculo, até porque tenho de me levantar pelo menos uma duas vezes por noite, já que a minha próstata não me dá esse descanso. Andar de noite num mosteiro todo ele em madeira, esta a ranger, as pessoas a acordarem, vozes que se escutam e sei lá mais o quê, não auguravam nada de bom.
Depois tivemos um jantar japonês, daqueles em que não existe mesa nem cadeiras, mas sim umas almofadas e uma minúscula mesa por pessoa. A minha mobilidade com o decorrer dos anos tem vindo a rarear. Se fazia a posição de lotús, as pernas simplesmente não desciam, se optava por ficar de joelhos era uma dor no peito do pé e umas cãibras perna acima que não me deixavam degustar a excelente refeição preparada pelo pessoal do mosteiro de Jokin, em Koyasan.
Tirando este pequeníssimo detalhe foi uma experiência extraordinária. Mais uma vez, a simpatia das pessoas, os banhos que não cheguei a fazer, a cerimónia matinal com os monges, a visita guiada ao mosteiro e a restante cordialidade ficaram-nos na memória.
Em Koyasan fazia um frio de rachar e as previsões meteorológicas ameaçavam nevar. De qualquer modo, a terra é muito agradável, possuindo um número de mosteiros que chega às cinco dezenas, sendo que a grande maioria vendo nestas pernoitas uma forma de se financiarem, logo optaram por fazer dos seus locais de recolhimento e oração também um local de pernoita para quem peregrine pelas bandas do Monte Koya, como foi o nosso caso.
Em Koyasan, já no dia da partida, visitámos o maior cemitério do Japão. Uma obra de arte e de contemplação onde repousam centenas de milhares de japoneses que escolheram este destino como morada final. O campo santo é de uma beleza de cortar a respiração e está encimado por um mausoléu dedicado ao fundador da prática budista na região. Esse homem, cujo nome se me varreu da memória, dizem os entendidos que não morreu, apenas entrou em meditação transcendental partindo para uma viagem sem regresso.
O lugar é de um silêncio contemplativo a reclamar respeito. Respeito pelos que partiram, para que os que cá ficam possam também ser respeitados.
Neste parque, onde a saudade é um lugar comum, reparo que muitas estátuas e até pedras pequenas, arredondadas, têm colocadas invariavelmente um pequeno gorro vermelho de lã e um babete, este também encarnado, mas com uma faixa branca.
Intrigado quis saber do porquê. Não que não suspeitasse de uma qualquer crendice em que não acredito, mas também não condeno. Sim, eram famílias que perderam filhos crianças e assim encomendavam a sua alma a uma entidade superior para que velasse por elas.
Se isso lhes trás alguma paz de alma, algum consolo extraterreno, pois quem sou eu para contrariar essa forma de acreditar.

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