Traições

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Rui Sousa Santos

médico

Dos muitos pontos de ruptura no tecido político e social que a Revolução Francesa (RF) introduziu na vida que hoje vivemos, o espaço público assume importância relevante. Ao criar as condições para a mudança da classe efectivamente dominante, permitindo que a burguesia, em plena fase ascensional, passasse a dispor de um efectivo mecanismo representativo de poder até então na posse exclusiva da nobreza, a posse fundiária, a RF trouxe para o seio da comunidade, de uma forma eminentemente aberta, a possibilidade de construção e expressão do pensamento, como instrumento fundamental da construção de uma mudança, essencial numa fase de consolidação de alterações estruturais inéditas da sociedade. As novas maneiras de olhar realidades antigas que o Renascimento havia trazido consubstanciaram um tempo novo de construção de saberes, de releitura do real, o aproximar na natureza do homem, com o abandono progressivo de explicações teleológicas convenientes a uma estrutura anquilosada de salvaguarda e manutenção do poder político e social. O que, até então, apenas era dito em círculos privados, embora cada vez mais alargados, passou a poder ser expresso na praça, sem peias ou medos, gerando espaços de liberdade de pensamento e de expressão pouco comuns na história da humanidade. Numa fase incipiente da construção de uma nova ordem económica, que teria desenvolvimentos exponenciais nos anos vindouros, a redistribuição dos poderes passava, também, por momentos de sedimentação de novas maneiras de fazer política, com novos actores. Não existiria, neste dealbar do século XXI, o capitalismo global que vivemos com a sua crise de crescimento, sem o advento das ideias liberais e sem a afirmação do liberalismo, depois de previamente testado em terras de além-atlântico. A construção do espaço público, o seu reconhecimento pela sociedade, a formação e afirmação da opinião pública enquanto novo “também-poder” constitui uma peça fundamental de toda a vida política e intelectual do século XIX, em que uma Europa fervilhante de ideias de poder económico alargou, imperialmente, o seu domínio a outros continentes. Este crescimento da importância do papel da liberdade de pensamento e de expressão nunca foi linear, como nunca foi linear o desenvolvimento intelectual e económico das sociedades que, em maior ou menor grau, o permitiam. A necessidade de reorganização, quer na frente interna, em termos de construção/afirmação de um poder central forte em alguns países europeus com uma longa tradição de autonomia de regiões, quer na frente externa, com a luta pela redefinição das regras e das áreas de influência de mercado, conduz a um período de grande instabilidade política (que conduzirá, dramaticamente, à primeira guerra mundial) e extraordinariamente rico em termos de vida intelectual. A progressão das ideias, o desenvolvimento industrial, o desenvolvimento científico, as novas formas de fazer política, a construção de regimes democráticos, a separação de poderes, todas estas vertiginosas novidades, ocorreram durante um curto período, de pouco mais de cem anos, num ritmo e a uma escala nunca vistas na história da humanidade. O espaço público (hoje já com novas formas de “preenchimento”, como as organizações da chamada sociedade civil) cresce em importância e, com ele, o papel de novos instrumentos de desenvolvimento e condicionamento da opinião pública.
A opinião pública passa, assim, a desempenhar um papel preponderante na segunda metade do século XX, tanto pelo seu papel activo nas sociedades democráticas, como, de modo não menos importante, pela sua anulação nas sociedades não democráticas. Neste item, como noutros, nazismo e estalinismo comungaram das mesmas preocupações no anular da expressão alternativa e, com a anulação desta, da liberdade de pensar e decidir. Com todas as manipulações verificadas ou inventadas, com o facilitismo, a mediocridade e o mau gosto que nos entram casa vinte e quatro horas por dia via televisão ou via rádio, a enorme maioria das pessoas continua a querer poder decidir pelo menos uma parte do seu futuro. E a recusar quem lhe queira impor formas únicas de pensar. Mesmo porque não há paraísos na terra, por muito que algumas auto-promovidas vanguardas os tenham querido vender e clamem absurdamente agora por traição, depois de descobrirem a proximidade das fronteiras do inferno sem o quererem admitir.

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