Este encontro ocorreu em Mértola, seguiu para Beja e depois para Aldeia de Palheiros, Ourique, Mina da Juliana, Santa Vitória, Jungeiros, Santa Clara, Sabóia, Odemira, enfim pelas planícies do Campo Branco, barros de Beja e serranias de Santana. E o que aconteceu foi um encontro ocasional com um livro. O que li? Não sei se crónica. Não sei se poesia. Não sei se humor. Não sei se apenas um livro de estórias caricatas. Provavelmente tudo isso, condensado com uma mestria ímpar por Vítor Encarnação, colaborador deste jornal, num livro de formato pequeno, brilhante e delirante, cujo título dá pelo nome de <b><i>Marcado a Cal. </i></b> Não deixa de ser um livro atrevido. Pois é sabido que, para os homens das letras, futebol é coisa que não merece o mínimo de atenção, quanto mais desperdiçar palavras e tempo a um tema tão popularucho, tão pouco intelectual. Mas este autor de que aqui se dá conta, pela fluência da sua escrita, recupera a arte de jogar à bola dos confins da obscuridade. E através de um pormenorizado exercício de memória, apresenta-nos 30 magníficas estórias, todas elas girando em torno dos campeonatos de futebol organizados pelo INATEL. Só a literatura possui esta virtude, a de devolver o belo onde a dúvida e a descrença já reinam a olhos vistos. A literatura de qualidade reconcilia-nos com o mundo onde vivemos e com aquele onde já não queríamos estar.
Vítor Encarnação, este sim, é escritor e de excelência. Querem ver? “Não há no mundo da bola regido pelo Instituto Nacional do Aproveitamento dos Tempos Livres a mais pequena dúvida de que os espaços privilegiados para iniciar processos de contratações para a época futebolística seguinte continuam a ser os bailes, festas de verão, casas de pasto, mesas postas de petiscos variados e bares abertos até às tantas. É aí, na noite já madura e encharcada em médias, garrafas de sete e meio, sopas de lebre e chás da Escócia que, a coberto de mais uma rodada, os dirigentes actuam e os contratos se firmam no meio de uma cortina de fumo. Tudo na base da oralidade e da confiança, tudo selado com um abraço, uma palmada nas costas e meia dúzia de abaladiças, pois um homem que jogue no INATEL tem uma memória prodigiosa que nenhuma ressaca, por mais valente que seja, consegue apagar. Por norma, é assim. Tal como acontece aos homens no geral, também na bola as contratações se conquistam pelo estômago. Aliás, a informação sobre os comes e bebes previstos para a terceira parte pode decidir em caso de dúvida entre dois clubes. Às vezes troca-se de camisola apenas por causa do cardápio e da carta de vinhos.”
<i>In, <b>Marcado a cal</b>, editora 100 LUZ. </i>
Brilhante. Simplesmente brilhante. Nada mais.