Gosto de Gostar

Sexta-feira, 15 Novembro, 2024

Napoleão Mira

Escritor

Gosto de um inverno dos antigos com chuva de dia inteiro e frio de bater o dente, onde os dias são pequenos e as noites tão longas como as memórias de quem já viveu esta e outras vidas; mas não me julguem mal aqueles que por aqui passearem os olhos. Eu gosto mesmo do inverno!
Como sou cada vez mais caseiro, gosto de sentir o vento a zunir lá fora tentando penetrar pelas frestas das portas e janelas. Gosto de ouvir a chuva brincando às sinfonias onde as telhas são as teclas de um imaginário piano, as gotas, notas musicais que se me vertem ouvidos adentro, e eu, sentado à lareira em entretengas de passar horas de solidão onde brinco com o fogo e com as labaredas de palavras que da mente se me vão derramando.
Gosto de comida de panela e de vinho tinto alentejano. Gosto de ter amigos ao meu redor. Gosto de cozinhar e de experimentar novas receitas. Gosto da matança do porco e dos antiquíssimos rituais que a mesma encerra. Gosto de política, mas estou zangado com ela. Gosto dos homens, mas já acredito em muito poucos. Gosto do Alentejo e de Entradas especialmente. Gosto de entardeceres e de meter o nariz pelo postigo da vizinhança de modo a escrutinar o que cozinham. Gosto dos meus cães e da amizade canina que compartimos. Gosto de minis e de tremoços. Gosto de gostar de coisas que os outros não gostam. Gosto dos prosemas do Vitor Encarnação. Gosto de Bliss, Buika e Cante Alentejano e de mais um se número de sons que não cabem aqui neste escrito quase telegráfica. Gosto de tabernas antigas. Do sorriso dos taberneiros, dos minúsculos copos de tinto e das rifas de facas. Gosto do cheiro a lavado que minha mãe deixava na minha casa sempre que por lá passava.
Gosto do amor visceral que reparto com minha irmã. Gosto dos meus filhos como se fossem troncos duma indestrutível raiz. Gosto genuinamente dos meus amigos, embora pareça que por vezes estou distante. Gosto de abalar e de chegar, para depois voltar a abalar para de novo chegar…e mais uma vez abalar. Gosto do caminho e do aperto no coração sempre que vejo a torre sineira da minha terra.
Por falar em terra! Gosto de ter terra e orgulho na nobreza lavada das gentes que nela habita. Gosto de costas de gila com café de chocolateira e de fatias de pão barradas a banha, torradas no borralho matinal das últimas brasas. Gosto dos campos e da solidão da terra. Gosto do chaparro do Pernas, qual virtual fronteira que distingue o longe do perto. Gosto do labiríntico desenho das pedras da calçada da minha rua.
Gosto de Amália até morrer e não sei se até mesmo depois de. Gosto do Natal à volta do lume e com a família à volta. Gosto muito mais de dar do que receber mas, gosto sobretudo dos meus, de estar vivo e de sonhar sonhos de sonhar acordado que um dia realizarei à custa de muito brigar com eles.

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