Baba de camelo

Quinta-feira, 22 Outubro, 2015

Napoleão Mira

empresário

Não há noite, em que, entre a sopa e a sobremesa, não nos seja servido um prato de refugiados com todos os matadores.
Sentamo-nos à mesa à hora do telejornal e, para o abrir, um infindável rolo de arame laminado (isso do farpado, era no tempo de outros foragidos da morte certa!), é percorrido pela câmara até se perder de vista.
Metemos uma colher de sopa à boca e reclamamos pela nossa independência ameaçada
— ainda que não tenhamos recebido um único destes novos desesperados.
Na minha refrega diária sou confrontado com os comentários mais paranóicos, xenófobos e até cobardes que jamais julguei imaginar. Isto, no que se refere aos desgraçados dos sírios e outros foragidos de guerras domésticas, esses perigosos meliantes que nos pretendem invadir!
Existe uma substancial parte de indígenas cá da terra que pensa — motivados numa caricatura que circula nas redes sociais — que, a estratégia do Cavalo de Tróia, está para acontecer em Portugal.
Por aqui, no conforto da nossa interminável e crónica crise; no bem-estar do egoísmo que nos assiste — especialmente se opinarmos na comodidade do seio da matilha — encontramos os argumentos mais estapafúrdios de modo a justificar a nossa insensibilidade e deixar entregues à sua sorte, gente de carne e osso como nós. Gente que viu serem-lhe cerceados, amputados, decepados os sonhos feitos vidas. Gente que para sobreviver teve de debandar com a roupa que traziam no corpo, para logo cair nas malhas de agiotas, passadores e contrabandistas. Gente que paga fortunas para arriscar a própria vida, já que ela nada vale nas terras de onde vieram. Gente que viveu e viu com os próprios olhos a tragédia e a barbárie. Gente que já perdeu tudo, e por tal, já nada tem a perder.
No repasto que deu azo a esta crónica, um dos convivas presentes, entre colheradas de pudim flan, vomita mais uma dose de considerações depreciativas às chocantes imagens que nos chegam via TV, enquanto outro, concorda em acenos cabeçais, ao mesmo tempo que, compenetrado, mistura com afinco a sobremesa que lhe calhou em sorte: baba de camelo!
Por mim, reduzo-me ao silêncio apenas quebrado para pedir a conta, não vá o terceiro imbecil metralhar-me com a frase da moda: — Se gostas tanto deles, porque não os levas para a tua casa?
É nestes momentos que me lembro do meu amigo Toni. Um filósofo de ocasião que não vejo há muitas décadas.
Dizia ele para encerrar discussões desta natureza: — Morreu mais um soldado no Vietname. Venha mais vinho para esta mesa!

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