A crise e a felicidade

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Onofre Varela

jornalista / cartunista

A maioria de nós está farta de ouvir os arautos da desgraça alertarem para a crise que se aproxima. Mas a crise acompanha-nos há tanto tempo que a vida de cada qual é um repositório de crises, começando na financeira, passando pela saúde e acabando no emprego. Cá por mim estou tão farto de ouvir a ameaça da crise que aí vem, que me apetece gritar: Ai é? Então que venha, que eu já cá estou!… Cheguei primeiro e, nestas coisas da vida, a velhice é um posto.
Li, há semanas, um texto de opinião que contraria os vaticínios da crise. Nele se afirmava que a crise não passará de “bluff” e que a Economia tem esquemas e mecanismos auto-reguladores que, se estiverem afinados, compensarão o fenómeno e a crise acabará por não se manifestar nas dimensões dramáticas anunciadas. Se assim for, vamos ter uma crise de pantufas. Ela passa e nós ficamos a vê-la ir! Depois de ter lido o artigo desliguei os alarmes e decidi preocupar-me em ser feliz! A felicidade não é mais do que um conceito, a que cada um pode aceder sem precisar de acertar no Euromilhões. Aliás, aquelas pessoas que têm muito dinheiro — acreditem — têm uma vida desgraçada!… Não são mais felizes do que eu, que sou um teso! Elas só têm é mais poder de compra, mas em termos de qualidades humanas, podem ser, até, os maiores pobres deste mundo… a única coisa que têm… é dinheiro!… Coitadinhos daqueles que detêm fortunas… vivem preocupados e em constante tensão! A vontade de verem o dinheiro a gerar dinheiro, tira-lhes o sono, o que é imensamente prejudicial para a saúde. Só conseguem dormir empastilhados, coitados!… Muitos dos muito ricos, são tristes, têm pele branca e macilenta, e são desconfiados. Acreditem que viver assim é um inferno!… O dinheiro é um bem, mas também pode ser um mal. E a felicidade é outra coisa! Em termos científicos pensa-se que o estado de felicidade é induzido pela serotonina, que é uma substância que se encontra em muitos tecidos, incluindo o cérebro, no qual controla os estados de consciência e de humor. Ultimamente, um grupo de cientistas do University College, de Dublin, que se dedicou à procura das chaves para a felicidade, alcançou resultados surpreendentes. Eles mostram, por exemplo, que se sente mais felicidade quando se é útil aos outros (altruísmo) do que quando se procura o puro prazer (hedonismo). E que é mais feliz aquele que dorme mais horas por dia do que o outro que não cumpre um bom sono reparador. Descobriram, também, que cada um de nós tem um tipo de “felicidade-base” registada nos seus génes, de modo que aquilo que para um é sintoma de felicidade, para outro pode não o ser. O conforto da felicidade é sentido tanto pelo rico como pelo pobre, e não é perene. Só se é feliz em determinados momentos da vida. Ninguém é feliz a vida inteira. Há diversas razões que fazem accionar a serotonina, provocando estados de felicidade. E esta não é nada de concreto nem tem uma única matriz. Ela é algo que tem a ver com o sujeito que a procura, o que a transforma numa aventura individual. Por isso o indigente e o encarcerado podem sentir momentos de felicidade, enquanto que o rico e o libertado podem sentir-se profundamente infelizes. A ideia da felicidade tem muito do reconhecimento de si própria e da aceitação da vida e das suas circunstâncias. O imperador romano Marco Aurélio foi autor de um conjunto de reflexões entre as quais se encontra esta: “a felicidade é mais uma procura do que um encontro”. Mas ela é, também, um conceito cultural e social. Neste mundo, onde todos nós somos meros condenados à morte agraciados com pequenos adiamentos, a felicidade é questão fundamental para se querer continuar a viver. O sentimento de felicidade é um estado de espírito que a sociedade baseada no valor do dinheiro elevou (ou baixou, melhor dizendo) à condição económica de cada cidadão. Cada um terá a felicidade que pode (de “poder material”), de acordo com as suas reais capacidades económicas e com o padrão de felicidade instituido no meio em que se insere. Fica, assim, a felicidade de cada qual, reduzida ao facto de se ter, ou não, dinheiro… sem o qual o sentimento de felicidade não é plenamente satisfeito, por não se ter acesso a bens e a serviços já considerados como niveladores do estado de se ser feliz. E o conceito de felicidade instituído na nossa sociedade passa por três factores essenciais que são autênticos ícones civilizacionais: ter emprego estável bem remunerado, automóvel e habitação própria. Daí a felicidade ser também um conceito cultural que se apresenta diferentemente em cada latitude. Um nova-iorquino não motiva a sua felicidade no mesmo objecto em que a encontra um índio da selva amazónica, e no entanto ambos têm a mesma reacção química motivadora do mesmo sentimento. Estas divagações filosóficas avulsas, trouxeram-me à memória o velho conto infantil do Rei Infeliz, cuja doença da infelicidade foi diagnosticada pelos físicos da corte. A cura só seria alcançada quando o monarca vestisse a camisa de um homem feliz! Cavaleiros percorreram todo o reino em busca de um homem verdadeiramente feliz que emprestasse uma camisa ao rei… mas em vão! Todos os contactados se diziam infelizes, cada um por uma razão diferente. Ou porque pagava altos impostos, ou porque tinha familiares doentes, ou porque lhe morrera a melhor vaca leiteira, ou porque os lobos lhe tinham dizimado o rebanho…
Por fim, já cansados de procurar, os cavaleiros buscadores de um homem feliz empreenderam o caminho de regresso, carregando o pesado fardo do insucesso na missão que lhes fôra confiada. Foi então que viram um pobre homem semi-nu, vergado sob um feixe de lenha. Numa derradeira tentativa de poderem encontrar ali o homem que procuravam, os cavaleiros, pouco esperançados, perguntaram ao ancião se ele era feliz. Que sim, foi a resposta! E disse que a mulher e os filhos esperavam-no em casa, debulhando feijões, e quando ele chegasse iria acender a lareira com a lenha que levava… até já podia imaginar o cheirinho da sopa de feijão a fumegar nas tijelas e o sorriso de satisfação a alumiar o rosto de toda a família. Haveria maior felicidade?, perguntou.
Atónitos, os cavaleiros pediram-lhe por empréstimo uma camisa, e ele, serenamente, informou: “Eu não tenho camisa!…”.
Neste 2009, mesmo com o espectro de uma crise encomendada por tanta gente… sejam felizes!

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