A modernidade é uma vertigem que vai fechando portas atrás de nós e engole a chave. A globalização é uma enxurrada que nos leva a todos na espuma da ilusão. O presente é um balão cheio de nada, à deriva, se não tiver uma mão que lhe agarre o fio. O futuro é uma bússola perdida, quando não há um passado que a oriente.
O tempo é, pela natureza das coisas, uma escada apoiada no chão. E um homem que quer chegar ao cimo de si, só o pode fazer se conhecer e aceitar a terra de onde proveio.
Às vezes parece que temos medo do tempo que já foi, o tempo lá atrás em nós e daquele ainda antes de nós. É como se o tempo que passou fosse um trapo velho, um baú cheio de inutilidades, um armário pejado de tralha e nós tivéssemos vergonha dele. Para alguns vanguardistas, artistas do holofote e do foguetório, o passado sabe a mofo, tem bolor no miolo, atrapalha o mediatismo.
Há gente que põe as patas em cima da memória. Abandona-a como se abandona um cão depois da época de caça. Cospe-a depois de lhe ter sugado o sabor e comido a carne.
Mas a memória é a coluna vertebral da alma.
Pedro Mestre sabe-o. Ele é um cuidador de passados, um guardador de memórias, um arqueólogo de harmonias, um garimpeiro de sonoridades, um redentor de identidades quase perdidas.
De tempos a tempos nascem pessoas ternas, vibrantes, superiores, pessoas cujo cordão umbilical fica agarrado à terra, cujo coração lateja nas raízes de um sobreiro e nas asas de um pardal. São parte integrante, amam os cheiros, as cores, as formas. Sabem que antes deles, houve o princípio e a razão das suas próprias existências.
Pedro Mestre absorveu o som das raízes, ouviu-as pulsar nas geadas e nas noites quentes, nas tabernas, nas feiras, nos balhos e à soleira as portas. Percebeu os seus lamentos como se estes fossem fantasmas vagueando perdidos, feridos, por terras do Alentejo. Percebeu que as gargantas são os troncos e as vozes os frutos e as cordas da viola são as cordas onde nos temos de agarrar para não cairmos no esquecimento.
Ele é um pastor de sons que juntou um rebanho tresmalhado.
O Pedro gosta das mulheres e dos homens que têm corações que batem a ritmo de baldão, fazem despique com os seus destinos e modas com as suas nostalgias. Quando toca a viola, os dedos do mestre folheiam as páginas do passado, tocam-no, acariciam-no, erguem-no das cinzas.
Saiu da estrada, pisou o pó, encostou-se aos balcões onde há vinho para aliviar a dor de sentir o peso do mundo, ouviu o eco da serra de Santana, a lamúria das planícies, afinou ironias, chorou amores.
E agora, o Pedro é uma viola com alma de madeira. A viola é uma mulher com cordas no ventre. O Pedro faz violas como quem faz filhos. Canta com alecrim na boca.
O Pedro Mestre precisou de ir para o altinho.
Donde ele estava, ele não via bem a memória.
Obrigado.
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