Velhos

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Sandra Serra

Depois da mulher ter morrido, a mala dele estava sempre feita. Era uma mala cheia de pouca coisa, onde não podia faltar o chapéu preto e as onças de tabaco. Seis meses aqui, seis meses ali, seis meses de novas habituações, de trajectos marcados pelo local ora fosse campo ou cidade. Quando ficava em minha casa, gostava de ir para o jardim, lembro-me. Ficava sentado no banco de madeira junto de outros com iguais chapéus pretos, só a olhar, umas vezes, jogando às cartas, outras, calmamente à espera de qualquer coisa, parecia-me a mim quase sempre. Víamos os desenhos animados juntos, gostávamos do Bel e Sebastião. Não falava muito, mas ao pé dele não havia silêncio. Falasse cada ruga, cada dor, cada cabelo branco.
Antes, quando se via o Bel e Sebastião, via-se com a vizinha Maria o “Barco do Amor”, versão a cores, na única televisão colorida que havia na rua. E sentava-se ao fresco com a vizinha Ana e a vizinha Catarina, mãe e filha de cabelos longos debaixo do lenço de “rabuço”. A cada escovadela, uma história que nós, os putos lá da rua, devorávamos com tanto gosto como os gelados de gelo a dois e quinhentos que comprávamos na vizinha Emília.
Em África, diz-se, quando morre um ancião morre uma biblioteca. Na minha rua, as bibliotecas foram fechando até não existir sabedoria com sabor a morango gelado que devorar.
A perspectiva sobre o envelhecimento sofreu colossais transformações ao longo dos séculos: de ancião sábio, símbolo de experiência e respeito a um velho frágil, improdutivo e dependente. Mudaram as relações inter-geracionais, mudaram as relações, todas. Pais e filhos, avôs e netos, vizinhos. A velocidade aumentou até no lugar mais sereno. O fresco da noite já não convida a escovadelas partilhadas. As malas já não estão sempre feitas. Fazem-se em casa e desfazem-se no lar ou no hospital. A pessoa perdeu-se no indivíduo.
Nas páginas deste jornal, há uma semana atrás, Carlos Monteverde, director da Unidade de Convalescença do Hospital de S. Paulo em Serpa, acusava as famílias de “desresponsabilização”. Para combater o flagelo dos idosos “esquecidos” em unidades de saúde como a de Serpa, dizia, deveria ser implementada uma legislação que penalizasse as pessoas “que se desinteressassem pelos familiares idosos”.
É triste, não encontro outra palavra. Não só é triste a situação real que é a do abandono dos idosos, como o facto de se ter de pensar em penalizações para “obrigar” as famílias a fazer pelos seus o mesmo que eles fizeram por si.
“Não há nada mais triste que estar na cama de um hospital, ver as famílias dos outros a chegarem e a gente não ter ninguém que cá venha”, dizia-me há dias um velho de olhar posto no vazio, à espera de qualquer coisa, parecia-me a mim.
Vou ter com ele todos os dias agora e ele conta-me da guerra de África, do que trabalhou logo desde criança, da “pouca sorte que tem tido na vida”. Deixo-o falar, sobretudo, chorar também. E recolho cada história, deste e de outros velhos, para a minha biblioteca feita de rugas e cabelos brancos. E de amor, um amor tão altruísta e verdadeiro como só os velhos conseguem sentir.

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