Uma rosa para Carolina

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Miguel Rego

arqueólogo

A Lua anichava-se, quase toda, muito queda e brilhante, na poça de água que as primeiras chuvas de Outubro tinham formado entre fortes trovoadas. A noite estava agora sem nuvens e um vento fresco soprando brando trazia um naco de frio doce, mas não o suficiente para fazer tremer os ramos frondosos e encharcados da azinheira que respirava calma junto ao Monte Amarelo. De quando em quando, ouvia-se ainda no silêncio corpulento da noite, o rasto deixado pelo caminhar lento das trovoadas vindo das largas serranias cinzentas que se avolumavam para Sul. Parecia sentir-se ainda maior o corpo pesado da imensa massa de terra que se avizinhava ali, para lá do que a quase Lua Cheia alumiava com o seu olhar claro.
O pequeno vale, que servia de leito à ribeira da Murta, respirava agora um vago sabor a terra molhada e a lenha queimada. Carolina reacendera o lume na lareira ainda morna que a noite chuvosa e turbulenta pouco antes a fizera apagar. O fim de tarde rasgado pelas trovoadas e pelas violentas bátegas de água fê-Ia decidir entrar mais cedo na pesada cama de madeira de carvalho e aconchegar-se entre dois lençóis alvos de linho e mantas de lã. Mas passada a borrasca, devolvida a normal quietude ao casario, aqui e ali interrompida pelo ladrar nervoso do Rafeiro ainda assustado pela tormenta e pelos sapos gordos e carnudos que saíam debaixo das pedras fugindo à água, Carolina desistiu de tentar adormecer. Nem o suave odor a alfazema que inundava o quarto, nem o delicado afago das roupas da cama, que tantas vezes tinham exasperado a sua avó materna para dali a tentar arrancar, eram suficientemente fortes para a manter naquela imobilidade nervosa.
Carolina somava pequenos ramos de esteva à mão cheia de pinhas que começavam a arder no chão de tijoleira da chaminé, com o auxílio de meia dúzia de folhas de jornal. Enquanto escolhia três magros troncos de azinho para juntar ao pequeno fogo que inundava de luz a sala de jantar, ajeitou-se-Ihe um pequeno sorriso nos lábios que lhe sombreou, zeloso, as pequenas rugas que começavam a pincelar os seus olhos amendoados.
Sentia o lume que encorpava na grande chaminé vestida de cal, enchendo a sala de sombras suaves e de movimentos inconstantes onde revia os seus bichinhos mágicos dos serões de infância projectados nas paredes e no tecto do casarão. Quando se levantou para guardar a caixa de fósforos na sanefa improvisada por um largo tronco de cedro sobre a boca da chaminé, tocou a pequena cadeira de troncos de esteva e fundo de bunho que lhe fizera o avô, onde se sentava aos saltinhos, de indicador em riste e rindo do ar incrédulo dos maiores sempre que reproduzia o que dizia cada um daqueles animais fantásticos, que só ela conseguia destrinçar em corridas intermináveis entre cadeiras, mesa e armários.
A noite ia sossegando pouco a pouco aos seus olhos entre um bule de chá de cidreira quase vazio e um fogo reduzido a um intenso braseiro incandescente, onde as sombras mais não eram que pequenas lavaredas comendo o que ia restando dos pequenos troncos.
Quando as cinzas quase engoliam uns pequeninos laivos incandescentes do lume já cansado, Carolina levantou-se. E, em meia dúzia de passos, com as mãos magras agarrando a fina chávena de cerâmica branca e amarela, chegou-se à janela do salão e bebeu o que restava de uma noite, agora mais escura e fria, mas invadida por um corrupio brilhante de estrelas. Não evitou com o grito seco, que ecoou por todo o vale, que Perseu agarrasse Pégaso perante a serenidade da constelação de Andrómeda. Depois, irritada, puxou o cortinado, e antes de resvalar para a cadeira de baloiço e semicerrar as pálpebras, fechou a porta da gaiola onde definhava um coelho sapudo com asas. Aconchegou ao seu colo o cão com bigodes finos de gato e patas de cavalo e enxotou o rato com rabo de penas antes que este voltasse a comer o quase rabo da velha lagartixa. O Monte Amarelo era agora o respirar tranquilo do resto da noite e, na velha azinheira, brotava mais uma rosa que Carolina haveria de colher antes da chegada impetuosa do Sol.

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