Trinta de Agosto de dois mil e nove, Domingo

António Lúcio

director da Rádio Pax

Já é noite, (não bem noite mais lusco-fusco) escrevo isto sentado à mesa de madeira onde habitualmente escrevo. Abro a janela, o ar morno, o céu salpicado de nuvens pardas e ameaçadoras, o vento grita de quando em quando, se não fosse o grito do vento a cidade em silêncio. Um cão a ladrar e o ruído de algum carro a passar na rua, de resto, tudo em silêncio. Pressinto que o Verão já se esgota. Não sei porquê mas lembro-me das palavras da minha mãe:
– Agosto para ser Agosto só com chuva no rosto.
Estou sempre a lembrar palavras da minha mãe, vivem comigo, fazem parte de mim. É curioso como, sem darmos por isso, vivemos com pedaços dos nossos pais agarrados a nós. A vida da minha mãe estende-se em mim, vive em mim, e a minha vida estende-se nos meus filhos. É assim, quer nós queiramos quer não. Mas o contrário também é verdade: olho para os meus pais e vejo fragmentos de mim, retalhos da minha infância, da minha adolescência, das minhas mágoas e alegrias. Olho para a minha mãe e vejo coisas de que gostei quando menino guardadas num gesto, num sorriso, numa lágrima, numa palavra, num olhar. A propósito do olhar: o que vêem os olhos da minha mãe quando olha para mim? Como vêem os olhos das mães? Será que vêem em nós bocados delas próprias? Será que a minha mãe vê em mim retalhos do que foi e do que é? Porque é que tenho sempre tantas interrogações, tantas dúvidas, e raramente tenho respostas? A minha vida tem sido uma pergunta contínua.
Chegou a noite e eu sem dar por ela, fecho a janela: a chuva tímida começou a espalhar pontos escuros na toalha da mesa de madeira. Se não fosse esta chuva miudinha e o vento a cidade em silêncio. Que ventos fortes e destruidores passaram pela minha cidade ao longo dos anos que a deixaram sem voz, calada, sem vida. Já me perdi, por onde comecei eu isto? Ah!, já sei, pelo fim do Verão. Na verdade, queria escrever uma crónica sobre o fim do Verão, contar porque gosto eu do Agosto mas os pensamentos levam-me para outros espaços. Sem dar por isso escrevo para os lados, tenho dificuldade em escrever a direito, com princípio meio e fim, os dedos nas teclas do computador levam-me por outras veredas, como se alguém invisível controlasse as minhas mãos e cochichasse na minha orelha.
– Vai por aqui.
E eu vou. Sem resistir. Nunca gostei de contrariar alguém invisível.
A minha mãe chama-lhe consciência.
– É a tua consciência a falar contigo.
Mas eu acredito que é alguém invisível, alguém que anda em bicos de pés e de vez em quando parece-me ouvir rir. Agora, enquanto escrevo estas linhas, continua a segredar-me ao ouvido.
– Vai por aqui.
E eu vou. Sem resistir. Há dias estive a vasculhar fotografias antigas e tropecei nesta que está aqui à minha frente. Eu, menino, na escola, talvez seis anos, não mais de seis anos, sentado na carteira (naquele tempo as carteiras das escolas eram assim) em pose de modelo fotográfico e a minha mãe ao meu lado direito com a mão no meu ombro. Hoje, sentado a esta mesa onde escrevo, sou capaz de lembrar-me de muitas imagens desse dia: eu e os outros meninos, vestidos com a nossa melhor roupa, ocupávamos à vez a carteira da frente para a fotografia. O fotógrafo, homem baixo e gordo, de cabelo lambido, cara rosada (possivelmente do vinho tinto), gritava connosco.
– Não mexa, menino, não mexa!
Mas o menino mexia.
– Agora, quietinho.
E o menino não quietinho. Depois, com voz áspera.
– Quieto, pá!
E o pá quieto. O clarão e a voz do fotógrafo logo a seguir.
– O próximo.
Lá fui eu, contrariado, ainda hoje não gosto de fotografias: não sei o que fazer com os braços e as minhas mãos ficam em sentido, petrificadas, todo eu petrificado.
– Agora não feche os olhos, menino.
E eu não fechei os olhos.
– Ponha as mãos em cima da carteira e sorria, menino.
O clarão e a voz do fotógrafo logo a seguir.
– Portou-se muito bem, menino.
Fiquei feliz. Não foi o elogio do fotógrafo nem o facto de me ter portado bem que motivou a minha satisfação naquele momento. Foi, isso sim, o orgulho que a minha mãe manifestou com o olhar. Eu, com seis anos, cumpri com brio aquela importante tarefa e a minha mãe ficou orgulhosa de mim. Vi esse orgulho no pensamento dela. Desde esse dia aprendi a ver o pensamento da minha mãe. Um pensamento que sofre quando me sinto perdido. Um pensamento feliz quando estou bem. Um pensamento que, apesar das distâncias, me tem protegido ao longo dos anos. Obrigado.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima