Por ser um alentejano em Lisboa, tive ao longo da vida, de me munir de argumentos que servissem como arma de arremesso a determinados interlocutores. Principalmente aqueles que tinham por diversão vexar as gentes a que pertenço. No jogo da competitividade entre regiões, coisa em voga nesses tempos idos, tinha sempre na ponta da língua os nomes sonantes da pátria alentejana. De tanto me defender, dei comigo a dominar matérias que não era suposto conhecer, e assim, de contenda em contenda lá fui construindo o meu demolidor arsenal de argumentos.
Memorizei praticamente todos os grandes vultos aqui nascidos e, dentro da pátria alentejana, mencionava ainda com mais fervor aqueles que me eram próximos territorialmente. Gostava de defender a tese de que o mundo sem alentejanos não seria a mesma coisa. Mas, quando a coisa tombava para o lado do desporto, tinha de rebuscar lá no fundo do baú da memória, um nome que pudesse ombrear com os que me eram apresentados. Para dizer a verdade, eram poucos os alentejanos que constavam desse meu cardápio. Até que, certo dia, ouvi dizer já não sei a quem, que um moço de Entradas e da minha criação, chamado João Silva, ia correr a volta a Portugal, integrando as cores do clube de Almodôvar. Era a primeira vez que um Entradense ascendia ao pelotão nacional. O ciclismo era o meu desporto favorito, os ciclistas naturalmente os meus heróis e, entre eles, pedalava um dos meus. Um que brincara comigo em criança. Muito possivelmente também terá aprendido a andar de bicicleta como todos os desse tempo. Ou seja: com o corpo enfiado dentro do quadro da bicicleta, criando uma estranha figura geométrica, um bizarro ballet pedalante que, na maior parte das vezes, terminava com os joelhos e cotovelos em sangue e a bicicleta desconchavada.
Estávamos em Agosto de 1976 e em plena Volta a Portugal em bicicleta. No meio do pelotão uma pequena equipa de generoso e rijos alentejanos davam nas vistas, entrando em quase tudo o que era fuga. Era a equipa do Almodôvar, terra que muitos do pelotão desconheciam, só lhes descortinando a posição geográfica, pelo sotaque grave e arrastado dos naturais daquela região alentejana. Manuel Caetanita, outro dos corredores do Almodôvar, no dia 19 de Agosto desse ano, na etapa que ligava a Sertã à Mealhada, a determinada altura da prova, levantou o traseiro do selim, meteu a “talega” e deu uma sapatada no grupo em fuga de que fazia parte, só parando na Mealhada, mesmo com os últimos seis quilómetros percorridos com a roda traseira furada. Para mim, o feito do Caetanita, foi como se este tivesse ganhado a Volta. Com esta vitória inflamavam-se-me os argumentos com que me defendia dos contendores vindos de outras paragens, dispostos à liça nesse território neutro chamado: Lisboa.
Passados dias, João Silva, por pouco não ganhava a etapa com meta marcada para a cidade de Espinho. Ficou em segundo lugar. Para este orgulhoso alentejano, foi como se tivesse vencido uma etapa da Volta à França, tal o inchaço no peito que se me pressentia.
Estas foram as maiores proezas de João Silva e companhia na volta de 76. Ainda correram as voltas a Portugal de 77 e 78, mas já sem o fulgor desse ano de estreia. A equipa almodovarense cumpriu nesse triénio grande parte do calendário velocipédico nacional, conseguindo algumas posições de destaque fruto das vitórias dos seus ciclistas, mas, como tudo na vida, em 79 a equipa já não regressou à estrada.
A equipa não regressou à estrada mas o João Silva, continuou a ser o meu ídolo. A minha referência no que às bicicletas dizia respeito e, trunfo na manga, quando se tratava de evocar figuras cuja proximidade familiar fossem à contenda chamadas.
Quando em 1997 regressei ao Alentejo, logo soube que o João se estabelecera em Almodôvar. Na primeira oportunidade fui visitá-lo ao seu estabelecimento de comidas e bebidas, chamado “A Canga”. A farda de serviço era uma vestimenta de ganhão. De “sprinter ganhão”, como fazia questão de se intitular. Falámos muito e demoradamente de ciclismo. Eu queria saber de viva voz, como era aquilo de subir às Penhas da Saúde; de descer serras a velocidades vertiginosas. Queria saber como era a solidão de correr contra o relógio; de ser protagonista duma fuga; das mazelas causadas pelas inevitáveis quedas; do cortar a meta em primeiro lugar e tantas outras incidências desse desporto, que praticado sobre duas rodas, continua a passar à porta de cada um. Ao João brilhavam-se-lhe os olhos quando falava de bicicletas e de corridas com elas. Apesar dos 20 anos que mediaram os factos ocorridos e esta conversa, o João tinha-os bem presentes na sua memória. Debitava com prazer as incidências desses vertiginosos anos, em que um jovem entradense sonhara conquistar o mundo à força de pedalada. E eu bebia-lhe cada palavra, ouvindo com redobrada atenção as ocorrências da “prova-rainha”, como se me fossem contadas dentro do pelotão.
Quando comecei a andar de bicicleta (já depois dos 50!) e a fazer as minhas incursões solitárias de vários dias por esse Portugal a fora ou mesmo até Santiago de Compostela, a lembrança dos episódios relatados por este conterrâneo assaltaram-me muitas vezes a memória. De algum modo orgulhava-me de, a meu modo, lhe seguir as peugadas, até porque calcorreei muitas das estradas que ele percorreu. Bem sei que o registo era outro, mas as montanhas eram as mesmas e, para chegar lá acima, também precisei muitas vezes de cerrar os dentes e ignorar as dores, tal como o João me confidenciara.
Depois, num determinado dia, chegou a notícia. Uma notícia aterradora, abrupta, inesperada e inexplicável. Sei que era uma sexta-feira de Janeiro, que o ano era o de 2013, o dia que o calendário marcava não o sei precisar. O que sei, é que nesse dia perdi um amigo, o herói da minha juventude e o meu mais valioso argumento quando se tratava de defender o património imaterial Entradense.

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