Solidariedade Indiana

Napoleão Mira

Escritor

Aquando das minhas deambulações pela Índia, fui escrevendo ao sabor e ritmo da viagem, normalmente nos locais que visitei, nos transportes, nos restaurantes ou nos hotéis onde me alojava.
Desses escritos saiu um livro chamado Olhares – Relatos da Índia. Reparo agora que muitos desses escritos são excelentes motivos para que os leitores viagem comigo. Aqui fica um exemplar.
“Kerala é um dos vinte e oito estados indianos, situado no extremo sudoeste do país. Destaca-se dos restantes vinte e sete por ter registados os mais altos índices de desenvolvimento, logo de evolução social e humana.
Esta superioridade de que Kerala desfruta deve-se à sua alta esperança de vida se comparada com a dos restantes estados, a uma menor mortalidade infantil, a uma saúde pública organizada, uma educação alicerçada numa excelente rede escolar, e ao mais alto rendimento per capita de toda a Índia.
Esta gente do sul da Índia não para de nos surpreender. Tenho andado algo adoentado, uma maldita constipação mal curada tem-me atrapalhado a vida e dificultado a dormida, especialmente na última semana.
Ao saber desta minha maleita, o motorista do minicarro, Sunil de seu nome, que nos levava a inspecionar um barco/casa para alugarmos no dia seguinte, fez um desvio inesperado, dizendo que íamos passar por sua casa.
Aí chegados, fez questão que saíssemos do veículo e apresentou-nos a toda a família que nos recebeu com desusada simpatia. A mulher do senhor, depois das apresentações e de nos oferecer algo de beber, perguntou-me pelos sintomas. Se tossia, se tinha expetoração, se era alérgico a paracetamol. Foi buscar uma caixa, retirou alguns comprimidos, uns para tomar em cima das refeições e outros antes da hora de deitar, conforme conselho seu.
A mulher do simpático Sunil era farmacêutica, ajudou-me a curar o maldito resfriado, ofereceu-me os medicamentos, quis que bebêssemos algo e, tudo isto, sem qualquer interesse posterior. Estou pasmado: esta não é a Índia que até agora conheci. José Luís Peixoto, no livro “O Caminho Imperfeito”, diz a dado ponto que cada um tem a sua Tailândia. Dou-lhe razão. Esta é também a minha Índia.
Fizemos negócio com o dono do Dream Palace, o tal barco/casa, só para nós, durante 24 horas.
O programa consiste em embarcar cerca das 12 horas, depois almoçar às 13 horas, passear pelos canais, jantar a bordo e dormir no barco com pequeno almoço no dia seguinte.
Acho que merecemos um pequeno luxo como este. Ainda por cima, esta tem sido a viagem mais barata de todas as que fizemos. Tal tem a ver com o facto de viajarmos, comermos e dormirmos em modo indiano.
A propósito da hospitalidade destes indianos do sul, lembrei-me, assim a talhe de foice, de um episódio que um estrangeiro com quem trabalhei me contou sobre Portugal, acerca de um português também ele do sul.
Contava-me que tivera no nosso país a experiência mais surreal e que o marcara até aos dias de então. De referir que o episódio já teria mais de trinta anos e Portugal era ao tempo um país completamente diferente.
Um seu amigo que tinha viajado por Portugal disse-lhe que, no interior, muitas vezes os estabelecimentos não tinham nome, não se faziam anunciar mas, regra geral, tinham à porta várias grades empilhadas de garrafas vazias.
Ao passear pelo interior do país, ao que julgo numa terriola qualquer do Alentejo ou da serra algarvia, num daqueles dias de brasa, viu três coisas: a frondosa sombra de uma parreira, uma mesa corrida e uma carrada de grades vazias. Quase um oásis, portanto.
Sentaram-se e aguardaram impacientes que os servissem. Nisto, vindo do interior da casa, apareceu um senhor de idade avançada e chapéu na cabeça. A adornar-lhe o canto da boca, assomava-se o que restava de um cigarro há muito apagado.
O homem esbracejava na tentativa de se fazer compreender, os ingleses esforçavam-se para se fazerem entender, até que a única linguagem que funcionou foi a gestual. Afinal, o gesto de beber é universal.
O velhote trouxe quatro cervejas fresquinhas que lhes souberam que nem ginjas. Depois de saciados, também fizeram sinal de que queriam pagar, ao que o homem terá respondido, acenando com as mãos em tesoura, que não, que podiam ir embora.
Nesse momento, apareceu um jovem que por ali estava de férias em casa dos avós e que conseguia comunicar com os intervenientes deste episódio.
Quem me contou a história queria agradecer, mas também saber como se mantinha um negócio sem cobrar aos clientes.
Foi então que o rapaz descodificou o quebra-cabeças. Aquilo não era nenhum estabelecimento; era, sim, a habitação do tal senhor.
A casa fora em tempos uma taberna, mas deixara de o ser havia anos. Restavam do negócio a mesa debaixo da parreira e as grades nunca reclamadas.
Nunca mais voltei a ver a pessoa que me relatou este episódio, mas tenho a certeza que, de cada vez que o tema Portugal vier à baila, o contará. É deste modo que se constroem as reputações das pessoas e dos países.
Também eu repetirei o episódio do Sunil, o condutor do minicarro que me levou para sua casa, me apresentou à família e me curou da maleita, sem nada pedir em troca.”

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