Nos dias que correm, o sentido atribuído à expressão “reforma do Estado” está, em meu entender, profundamente deturpado e, propositadamente, enviesado.
Quando se fala, em termos gerais (e sérios) do conceito, aponta-se para o ato de alterar/modificar, mas manter o(s) serviço(s) prestado(s) ao público, racionalizando procedimentos com atenção aos parâmetros de eficiência (meios) e de eficácia (fins). Procura-se, como popularmente se diz, “fazer mais ou igual, com menos” e servir melhor a comunidade, utilizando de forma mais eficaz os meios/ ferramentas à disposição.
Durante muitos anos, os estudiosos de teoria administrativa, por este mundo fora, parodiavam aquele governante que, para nada fazer ou decidir sobre a reforma administrativa, criava uma comissão para estudar as medidas que deveriam ser tomadas. Ficou bastante conhecida a frase que se deve “criar uma comissão para nada fazer…”
Temos, aliás, infelizmente, na nossa região alguns exemplos do que acabei de referir, mas passemos à frente para uma abordagem mais de “fazer” e menos de “pensar em fazer”. Vamos ao que interessa…
Tem sido bastante mais gravoso e dramático o sentido que o atual Governo tem dado ao termo aduzido anteriormente.
Para a atual maioria parlamentar e governamental significa reduzir, terminar, extinguir prestações e meios, sem qualquer preocupação com a qualidade (e quantidade) do serviço prestado ao público. Isto é, o principal motivo e a “força motora” da ação não é a melhoria do serviço ou permitir a “sustentabilidade” de qualquer sistema, mas tão somente (assumido que já está) a diminuição na alocação de recursos e no “corte” (cego) de meios e prestações.
Por exemplo: estamos constantemente a ser bombardeados na comunicação social com a necessidade em “reformar” (negociar) as concessões rodoviárias (PPP’s). No caso da auto-estrada do Baixo Alentejo optou-se, nas palavras do Governo, por “renegociar” e “poupar” cerca de 300 milhões de euros.
Pois, mas isso não é reformar! É… não-fazer, terminar e deixar ao abandono, ou seja, a renegociação e reforma do Estado para este Governo tem ido no sentido negativo de remoção de direitos e prestações e não o de assegurar a prestação com menos recursos.
Alguns exemplos: um dos lamentáveis casos é o que se passa, por exemplo, com o SNS – Serviço Nacional de Saúde (reconhecidamente um dos melhores e mais abrangentes do mundo), em que se pretende “reformar” o SNS diminuindo os médicos, reduzindo os meios de tratamento, diminuindo camas hospitalares (veja-se o caso, por exemplo, do hospital distrital de Beja) com prejuízo, evidente, para utentes que ficam mais desprotegidos e mais distantes ao nível de cuidados de saúde.
Outro exemplo é o das autarquias, em que as propostas da nova Lei das Finanças Locais e a de Atribuições e Competências configuram um verdadeiro “ataque” ao Poder Local Democrático e que, a serem aprovadas, comprometerão a vida de municípios e freguesias nos anos que se seguirão…
Em meu entender, estamos todos a perder uma grande oportunidade de verdadeiramente reformar o Estado e a própria relação (que se encontra em estado de degradação progressiva) com os cidadãos.
No sistema eleitoral (de representação) em vez de se “reformar”, o caminho mais fácil foi o de… extinguir autarquias. Sem critério de ligação entre territórios, desrespeitando a sua identidade, criando problemas com o argumento (que não corresponde à verdade) disso significar… poupança. Pois, mais uma vez… reforma = extinção.
Houve uma enorme pressa em se limitar mandatos autárquicos (presidentes de câmara municipal e de juntas de freguesia) que, pessoalmente, entendo como necessário e salutar para o regime democrático, mas não se teve a mesma “diligência” com a limitação de mandatos de deputados da Assembleia da República ou do seu número (manifestamente superior às exigências do país) ou ainda ao absurdo de serem eleitos para representar a “nação” e nunca a “região” onde são eleitos. Mais uma vez, se está a perder a oportunidade de avançar, de forma decidida, para a criação de um sistema eleitoral de eleição uninominal (de todos ou de parte dos deputados), o que possibilitaria uma maior identificação com os eleitores (a esmagadora maioria não sabe quem elege) e uma maior responsabilização dos eleitos para com os assuntos da região de eleição, como aliás existe em muitos países de grande tradição de participação cívica e eleitoral (Reino Unido, etc). Já agora, também convinha dar um tratamento adequado ao regime de exclusividade que os deputados deveriam ter… como acontece, aliás, por exemplo, com os presidentes de Câmara!
Na sequência do que se referiu, porque não avançar-se, corajosamente, para uma situação de “obrigatoriedade” no exercício de voto?
É bem patente que a diminuição progressiva do exercício do “dever cívico”, fruto de conjugação de diversos fatores, ameaça, muito visivelmente, o futuro do nosso sistema político e pode pôr tudo o resto em causa, quando aqueles que deveriam comandar o destino da sociedade, se recusam a nela participar…
Continua o absurdo de, em tempo de crise e dificuldades generalizadas, haver uma classe “que ainda resiste ao invasor”: a dos gestores públicos. Não há qualquer explicação e justificação lógica para que muitos deles aufiram o vencimento do Presidente da República vezes quatro (muitos), vezes 10 (alguns) ou vezes 20 (poucos, mas demais!).
Não é aceitável que muitas empresas públicas, suportadas por meios públicos, se rejam por regras de empresas privadas (sem o necessário controlo e transparência públicos) e ainda tenham a veleidade de se aventurar por gestões financeiras “flexíveis” com utilização de produtos financeiros (de grande risco) como aconteceu recentemente (SWAP’s) e de dano muito relevante!
O que é público tem que ser, naturalmente, controlado pelo público. É esse um dos pilares do nosso sistema democrático.
Estes são alguns exemplos daquilo que poderia ser uma pequena e modesta sugestão para se começar a pensar de forma “estrutural” (e não conjuntural) para uma verdadeira reforma do Estado.
Só esperamos que, não levemos tanto tempo a abordar estas questões e que, mais tarde, elas nos sejam impostas, por outras realidades (ainda) mais difíceis.
E por favor, não chamem reforma à destruição do Estado!
* Artigo escrito com o novo Acordo Ortográfico.