Quem é que lê tanto livro?

Quinta-feira, 22 Novembro, 2018

Vítor Encarnação

Um destes dias, enquanto andava à procura de definições sobre escrita e o acto de escrever, deparei-me com uma citação já com largas décadas, mas que se mantém muito actual e com tendência para um perigoso agravamento. Dizia André Gide, Nobel da Literatura em 1947, que há “Tantas pessoas que escrevem e tão poucas que lêem!”.
É um facto que uma ida às livrarias – quase já só nos centros comerciais, as mais pequenas e independentes estão a definhar – mostra-nos uma imensidão de títulos dos mais variados géneros. Os escritores que publicam muito, as editoras que editam sem parar e os livreiros que vendem bastante, certamente serão conhecedores do perfil dos consumidores que mantém viva esta indústria da palavra. Pese embora a preocupação das pessoas que lidam com a Educação e a Cultura em Portugal e as excepções óbvias dos escritores anónimos e das editoras familiares, não consta que o negócio esteja mau.
Perante esta aparente contradição fico estupefacto. Afinal, olhando para tanta prateleira, tanta montra, tanta promoção, tanto top, quem é que compra tanto livro, afinal quem é que os lê?! Onde estão os leitores que eu não os encontro? Onde está a finalidade última da escrita, onde está a foz do romancista e do poeta, onde estão aqueles que deveriam absorver o conhecimento, a emoção, a criatividade? Será que a publicação desenfreada é apenas um negócio de folhas metidas dentro de uma capa? É um mistério. Para mim é um grande mistério. Sou professor, trabalho com dezenas e dezenas de alunos, conheço-lhes os hábitos, os passatempos, sei qual é a sua relação com os livros, sei a dificuldade que eles têm em ler e interpretar, sei que o critério de escolha de um livro para um qualquer trabalho obrigatório é a espessura desse mesmo livro, sei que oferecem livros porque o autor é conhecido da televisão, sei que vão aos centros comerciais e não entram em livrarias, sei que recebem livros que não abrem, sei que os seus pais não lêem, sei que lá em casa o livro, se existir, é um acessório decorativo, objeto de morrer virgem na estante da sala, sei quem frequenta a biblioteca para ler. Um livro é uma maçada, não há paciência para ir descobrindo, para ir disfrutando, lentamente, cada palavra, cada parágrafo, como se fossem chaves para ir abrindo horizontes, um livro demora muito a chegar ao fim, não tem teclas de avanço rápido, não dá respostas rápidas e superficiais.
Todos os alunos que contrariam este último parágrafo são excepções, contam-se pelos dedos, vão sendo uma espécie em vias de extinção, os guardiões de um fogo quase extinto.
Falo com outros professores, falo com pais, com bibliotecários, falo com escritores, com jornalistas, com livreiros cuja missão vai fraquejando, e pergunto-lhes onde estão os leitores e eles, todos eles, me dizem que não sabem, às vezes aparece um, às vezes conquista-se um. E por isso fico perplexo. Há aqui algo que não bate certo, esta desequilibrada lei da oferta e da procura faz-me espécie.
Poucos, mas bons, é costume dizer-se. O problema é que na escrita e na leitura, poucos não chegam. Poucos é pouco para o futuro da cultura e do conhecimento e a História vai acabar mal.

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