Perceber a história

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

José Filipe Murteira

professor do Ensino Secundário

No passado dia 21 de Fevereiro faleceu em Beja D. Manuel Falcão, que aqui chegou em Janeiro de 1975, num período da nossa História (nacional e regional) bastante atribulado, após a reconquista da liberdade e da democracia, com o 25 de Abril.
Com uma postura simples, uma grande humildade e um humanismo cristão próprios de um pastor que desempenhava as suas funções para servir o próximo, D. Manuel foi, muitas vezes, apelidado de “Bispo Vermelho”, tal como sucedeu com outro bispo, também ele Manuel (felizmente ainda vivo), que dirigiu a Diocese de Setúbal entre 1975 e 1998. Esta designação, se em alguns casos não tinha uma conotação negativa, reconhecendo antes o papel desses clérigos junto dos mais desprotegidos das populações em que estavam inseridos, foi igualmente utilizada em tom depreciativo, com uma conotação político-partidária que pretendia denegrir a sua importante actividade pastoral.
Ora quer D. Manuel Martins, quer D. Manuel Falcão, mais não fizeram do que perceber a História dos territórios que administravam: o primeiro, ao denunciar a situação de milhares de operários do distrito de Setúbal, nos anos 80 do século passado, colocados em situações de miséria e de pobreza, por uma grave crise económica e social, para a qual não tinham contribuído; o segundo, ao verificar que o afastamento dos alentejanos em relação à Igreja Católica, tinha razões que vinham de tempos antigos, e que esse distanciamento não significava ausência de religiosidade, bem presente nas suas vidas.
D. Manuel Falcão encontrou um povo que, durante décadas, passou fome, foi explorado e humilhado, a coberto de uma aliança entre uma ditadura, apoiada numa força repressiva (a GNR) e os grandes proprietários fundiários, perante uma Igreja conformista, quando não mesmo colaboracionista (com excepções, é claro).
Por isso, mais do que uma luta política ou ideológica, o que o bispo de Beja viu nesses camponeses que se entregaram a uma Reforma Agrária onde depositaram todas as suas esperanças numa vida melhor, foi um conjunto de homens e mulheres que, para além do material, aspiravam sobretudo à dignidade e à cidadania, que não lhes era reconhecida durante as décadas de opressão. E foi junto a estes homens e mulheres, com quem se identificou, que desenvolveu a sua acção evangelizadora, promoveu uma obra obra social assinalável, prestigiando assim a Igreja a quem dedicou a sua vida.
Curiosa é também a atitude de espanto daqueles que referem o seu diálogo com os presidentes de câmara comunistas (durante muitos anos, a maioria no território abrangido pela Diocese que D. Manuel dirigia). É que, mais uma vez, o bispo de Beja percebeu que os autarcas alentejanos (e não apenas os comunistas) estavam a realizar um trabalho que visava, acima de tudo, tirar do atraso as aldeias e lugares da região, dando aos seus habitantes condições de vida dignas, em acções como a electrificação, o abastecimento de água ao domicílio ou o saneamento básico. Como não dialogar, então, com quem trabalhava em prol de todos, católicos ou não, que viam, finalmente, chegar às suas casas e às suas terras o progresso e o bem-estar a que também tinham direito?
Duas notas finais. A primeira para destacar uma outra faceta de D. Manuel Falcão, ao perceber o importante e inigualável património religioso da Diocese, criando os meios para a sua preservação e promoção, aquém e além fronteiras, através de um departamento específico, dirigido pelo arquitecto José António Falcão, com um trabalho único no país. As várias exposições realizadas, os museus de arte sacra criados e o festival “Terras sem Sombras” são marcas de uma actividade que dignifica e prestigia a Igreja e o Alentejo.
A segunda nota, para sublinhar o facto de, passados quase 40 anos da chegada de D. Manuel Falcão ao Alentejo, a situação ser, felizmente, bem diferente daquela que ele bem percebeu: hoje vive-se em democracia, a GNR é uma força militarizada ao serviço do regime democrático, enquadrada por leis aprovadas pela Assembleia da República, existe uma nova geração de agricultores, com uma mentalidade diferente das que a precederam e há uma nova atitude da própria Igreja, que desenvolve um importante papel pastoral, social e cultural, em que vários dos seus membros se destacam, a nível regional e até nacional.
Onde se integra, obviamente, o sucessor de D. Manuel, o bispo D. António Vitalino, homem do nosso tempo, adepto das novas tecnologias, que reconhece a importância da comunicação social, onde colabora com regularidade, e que não hesita em denunciar o absurdo consumismo da época natalícia ou a “escravatura humana” de alguns emigrantes que trabalham nos campos do Alentejo (ele próprio é presidente da Comissão Episcopal da Mobilidade Humana).

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