O anjo da guarda

Sexta-feira, 30 Abril, 2021

Vitor Encarnação

Escritor

Nota prévia: Por ter saudades de ir assistir a jogos de futebol no seu estado mais puro, trago-vos hoje um texto que faz parte do livro Marcado a Cal, editado há já alguns anos, com prefácio do meu amigo e cartoonista de excelência, Luís Afonso, e que é o resultado do cruzamento de duas paixões paralelas na minha vida e que até então nunca se tinham cruzado: o futebol e a escrita. É o registo de algumas situações absurdas protagonizadas por gente que eu conheço, e que de alguma forma todos nós conhecemos, gente que vive com uma bola de futebol dentro do peito.
O livro é composto por 30 histórias que são 30 memórias vivas dos meus tempos de jogador de futebol do Inatel, pelo Palheirense, e do campeonato distrital, pelo Ourique.
São pedaços de conversas de balneário, de diálogos mantidos dentro de campo, de situações inacessíveis ao público, coisas que eu achei serem de extrema importância, pois são elas que sustentam o profundo e cego amor pelo jogo da bola.
Marcado a Cal é sobre cada hora e meia de paixão pelo futebol profundamente amador, sobre fragmentos que se soltaram das alíneas dos regulamentos, sobre doces subversões às regras e sobre casos que não ficaram registados nas fichas de jogo.
É, acima de tudo, um tributo que eu presto a todos aqueles que jogaram futebol comigo.

A polivalência e principalmente a capacidade de improvisar eram factores decisivos para que um jogo de futebol do Palheirense pudesse decorrer.
Uma direção amarrada aos estatutos e aos feitios rígidos das pessoas, presa a essa coisa de ter de haver secções, departamentos e funções definidas, estaria condenada ao fracasso.
O presidente da direção tanto podia marcar o campo como fazer a ficha de jogo. O presidente da assembleia tanto podia ligar o esquentador como fazer as sandes. O que num dia fez de delegado ao jogo, podia estar noutro dia no bar ou a vender rifas. O que estendeu a roupa no fim-de-semana passado podia estar neste a fazer a linha porque o treinador tinha ido à caça. Abaixo as hierarquias. Viva a liberdade e a fraternidade. Viva o campeonato do INATEL.
Como a vida é uma roda da fortuna, uns dias está lá em cima e outros dias está cá em baixo, certo dia coube ao Ferruginha fazer de massagista.
Dado o seu variado e valioso leque de soluções, respostas e disponibilidades, qual ator apto a desempenhar qualquer papel por mais difícil que ele fosse, logo este homem dos sete ofícios e de mais de trinta vidas, ganhou contornos de irmão mais velho, assim uma espécie de anjo da guarda.
Alinhada no meio do terreno de jogo, a equipa do Palheirense colocava inconscientemente a saúde das pernas, braços, dentes e cabeças nas mãos daquele curandeiro, do amanhador, do mestre, do cirurgião, do dentista, do otorrinolaringologista.
Sentado no banco, o Ferruginha sabia – aliás todos sabiam – que perante o tipo de futebol que aí vinha, era ele o elemento mais importante do banco. Nem o delegado ao jogo, nem os jogadores suplentes, muito menos o treinador, eram tão influentes e tão decisivos como ele. Dos onze jogadores dentro de campo e dos outros cinco suplentes, apenas dois se sentiam reconfortados. Tinham chegado à equipa havia pouco tempo.
A mala de massagista com a sua cruz vermelha era o farol que os jogadores olhavam nas jogadas de aflição. A braçadeira com a palavra massagista bordada a azul era o garante da ajuda e do socorro imediato. E o Ferruginha era um 112 pronto a arrancar.
Numa jogada junto à meia-lua, duas canelas nuas chocaram de frente. O árbitro, impressionado pelos gritos de dor e pela violência da porrada, fez sinal ao massagista para entrar.
O Ferruginha ajeita a braçadeira, agarra na mala, liga as luzes do sorriso e arranca. Ciente da sua função, corre desalmadamente para socorrer o atleta lesionado e quando passa junto ao juiz da partida, tal era a velocidade, a mala dos medicamentos abre-se.
E de dentro dela não caíram nem algodão, nem água oxigenada, nem spray milagroso. Caíram isso sim, para aí uma dúzia de minis. O árbitro ficou sem fala, que é como quem diz, sem apito. O Ferruginha agarrou numa cerveja e disse:
– Vai uma minizinha, senhor árbitro? Olhe que elas estão fresquinhas!

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