Havia ali qualquer coisa de muito estranho. Exótico, absurdo, surrealista até. Aquilo não batia certo. Aquela ultrapassagem do limite, o abuso, a incursão em terrenos proibidos, a absoluta transgressão do estabelecido não se coadunava com o equipamento preto, a rigor, decote e punhos brancos, bandeirinha na mão.
Aquele ritmo frenético tinha mais a ver com um corredor de provas de velocidade do que com um fiscal de linha. Nada o detinha. Como se fosse uma vela, desfraldava a bandeirinha ao vento e aí ia ele com pernas de gazela, olhos de falcão, movimentos de leopardo. Nada lhe escapava. Reposições de bola em jogo, cantos dos dois lados, foras de jogo, faltas, lançamentos, substituições, conversas do público, número em que saiu a rifa, resultado do Ourique com o Castrense, o nome da moça que estava por detrás do banco do Palheirense, a que horas era o petisco da equipa.
Nada o detinha. Via-se que não era homem de deixar coisas a meio. Odiava metades, coisas inacabadas, meios-termos, coisas às talhadas, empreitadas não terminadas. Era uma criatura da totalidade, do absoluto, de jornadas completas. Só parava quando o trabalho estivesse feito. Linha é linha, conhaque é conhaque. E a linha lateral de um campo de futebol é um todo. Assim o quis o carrinho da cal.
Poucos repararam da primeira vez que a linha divisória do campo não o susteve. Mesmo os que o notaram terão pensado que terá havido uma distração, um lapso, embalagem a mais. A segunda vez, já acompanhada dos primeiros risos e assobios, traduziu-se por um pique de área a área, corrida de costa a costa, bilhete de ida e volta. Quanto mais o público batia palmas e ria, mais ele corria, inebriado, animado por tanta motivação. O pior foi a coordenação com o árbitro. Às tantas já o juiz tinha duas decisões diferentes para a mesma jogada. Fiscais de linha frente a frente, um de bandeirola levantada, outro a mandar seguir a jogada. De outras vezes o árbitro procurava o fiscal numa ponta do campo e ele já estava na outra. A sorte é que vieram dois, pois se tem vindo sozinho o homem abarcava o rectângulo todo. Belo extremo que eu tinha aqui, pensou o Quim Zé, jogador, treinador, agente desportivo e psicólogo do Palheirense,
Incomodado com tanta correria e atitudes tão pouco abonatórias para a dignidade da arbitragem, o árbitro teve de intervir. Dirigiu-se àquela entidade omnipresente e através dos seus gestos percebemos que lhe explicava que mandavam as regras que os fiscais de linha não penetrassem a outra parte do campo, que mesmo que o desejo fosse muito deviam manter virgem o resto da lateral. Apanhado de surpresa, talvez envergonhado pela alarvidade, o homem esmoreceu, cansou-se de repente. A bandeirola era agora um tronco, um mastro com um pedaço de pano branco na ponta a pedir rendição. Roubaram-lhe metade do campo, cinquenta metros de liberdade. Não se faz.
Quando o jogo acabou, o capitão de equipa foi ter com o árbitro e comentou a originalidade da situação. E o árbitro, constrangido e arrependido, já a pensar no que iria escrever no relatório, disse que um dos habituais fiscais de linha tinha ficado de cama e que quando foi almoçar, antes de vir para o jogo, conseguiu convencer um moço que ele conhecia a fazer de auxiliar. Por entre uma entrada de orelha assada, entrecosto grelhado, salada de agriões, pão caseiro e dois jarros de vinho de Pias, o nomeado recebeu um curso de árbitro intensivo de hora de meia.
Mais em pormenor ficou a saber-se que durante o curso foram ensaiados em cima da mesa corrida os princípios básicos da função de fiscal de linha.
Para não estar fora de jogo a côdea de pão tem de ter pelo menos o copo e o prato entre ela e a ponta da mesa. Se o rábano atrasar a bola ao garfo e este a agarrar com a mão, é falta. Mais o guardanapo isto e aquilo, as azeitonas isso e aqueloutro, o entrecosto assim e assado. Tudo ensaiado, tudo bem oleado com azeite de Moura.
Mas algo falhou. É que o jarro de vinho estava numa ponta do campo e cada vez que queria um copo, o nomeado tinha de se levantar e correr a linha toda até lá chegar.
E nunca foi impedido pelo árbitro.
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