Lavrar o Mar

Napoleão Mira

empresário

Gosto de circo e da vida cigana que levam os que a vivem. Admiro-lhes a destreza e perigosidade dos números quando estão na pista ou no trapézio, na mesma proporção com que lhes invejo a liberdade, essa conjugação do verbo “partir para de novo chegar e mais tarde abalar” de que é feita a vida dos que abraçam esta antiquíssima arte.
Antes do 2018 se finar decidi ir ao circo. Os amigos com quem partilhei a experiência já eram habitués na matéria e foi por insistência deles que acordei a criança adormecida que em mim reside e parti à descoberta desta nova maneira de a reviver.
Estava uma noite gelada em Monchique, mas dentro do chapitô, onde 700 almas esperavam pela estreia desta trupe de ginastas, acrobatas e malabaristas, respirava-se uma atmosfera surpreendentemente agradável, tanto pelo calor humano como pela climatização do espaço.
Logo que o espetáculo começou, dei por mim a pensar que iria assistir a algo verdadeiro e surpreendente. A dupla franco-finlandesa Victor & Kati eram os protagonistas daquela estranha performance. Ele um homenzarrão multifacetado, ela uma acrobata frágil e temerária deliciavam a assistência com arrojados números de acrobacia e equilibrismo raros de ver, ao mesmo tempo que, numa cacofonia debitada em várias línguas, Victor, qual maestro regente, empolgava a assistência levando-a a esquecer-se de si durante naquela hora e meia e, num passe de mágica, passar a residir no planeta circo de que esta brava trupe era representante maior.
Os restantes acrobatas, de quem não consegui captar os nomes, eram também eles exímios profissionais, tanto nos números em altura, como na barra oscilante ou na performance a cavalo, onde, estes dois que a terra há de comer viram um homem a fazer o pino em cima de um quadrúpede a galope.
O ritmo do espetáculo era verdadeiramente estonteante. Não eram permitidos tempos mortos e, em muitos dos números, sem que tivessem qualquer relação (ou se calhar tinham!) aconteciam várias coisas ao mesmo tempo. Recordo, por exemplo, que o portal de entrada e saída dos artistas estava montada em cima de um charriot que de vez em quando circulava pelo palanque que divide a assistência da pista, com os mais diversos quadros, numa demonstração de cuidado cénico, de novidade plástica e de diversidade cultural.
A acompanhar este terramoto de emoções estava – montada lá no alto – uma banda de músicos extraordinários que emprestavam o colorido sonoro necessário a cada momento e no segundo preciso.
Sei que durante as cinco noites de apresentação a lotação esteve permanentemente esgotada, tal quer dizer que existe futuro para o circo, só há que ser inventivo. E numa vila do interior algarvio, levar a cabo uma empreitada desta natureza requer mais do que uma ponta de loucura. Requer visão estratégica e capacidade de desenvolvimento recorrendo às agências de desenvolvimento local, bem como ao apoio do programa “365”.
Dizem-me que a brilhante organização se deve à dupla Giacomo Scalisi e Madalena Victorino, responsáveis pela programação “Lavrar o Mar”.
Pela minha parte quero dizer-lhes que para além de lavrarem o mar, gradaram-me os sonhos e escarificaram-me os sentidos.

O autor utiliza o
Novo Acordo Ortográfico

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