Jorge

Napoleão Mira

Escritor

Tempos houve que regressar à capital era motivo de exaltação maior. De inexplicável satisfação ou de um desejo afã de percorrer becos, vielas, ruas ou avenidas de que conhecia cheiros, rostos e hábitos.
Não havia zona da cidade onde não conhecesse gente, onde sabia ir encontrar conhecidos ou amigos, logo uma razão mais que plausível para celebrar esse regresso à urbe que tinha sido o meu lar por largas décadas.
Ir à capital, requeria (e ainda requer!) determinados hábitos e até me parecia que, caso não cumprisse determinados rituais, a viagem não me teria corrido bem.
Conhecia os poisos matinais, vespertinos e noturnos onde encontrar pessoal das minhas relações. Traçar um percurso em função das pessoas a visitar era um exercício simples, rotineiro e quase intuitivo.
Escrevo esta crónica porque numa das minhas recentes visitas a Lisboa resolvi marcar o ponto num poiso que conhecia desde sempre: “O Bacano”. Um restaurante/snack-bar na Avenida João Crisóstomo, ali às Avenidas Novas. Desde que saíra de Lisboa que este era um dos locais onde sempre fora recebido com amizade e simpatia. Os dois Albertinos (um patrão, outro funcionário) eram dois poços de amabilidade. O Albertino funcionário sempre com uma graçola preparada, contrastava com a urbanidade do outro Albertino, que sem tanto jeito para piadas era, a par do Mário (outro dos sócios), dois excelsos profissionais da restauração.
Passada a pandemia, na primeira incursão a Lisboa quis regressar ao “O Bacano”.
Qual não foi o meu espanto quando ao chegar à porta dou com esta fechada. Nela estava pespegado um anúncio de imobiliária dando conta da finitude do negócio.
Ao longo dos anos já vinha perdendo muitos desses contactos. Uns por vias de se lhes ter terminado a carreira profissional, outros por mudança de ramo, morada ou emprego, e ainda os outros: os que da lei da vida se libertaram. E assim, aos poucos e poucos, foram deixando de fazer sentido esses circuitos citadinos, que sempre percorri sozinho, para regalo de uma satisfação pessoal que tenho dificuldade em descodificar.
De todos esses circuitos permaneceu o da Baixa. Ainda o faço com a mesma emoção de sempre. Desço de metro aos Restauradores, cruzo a Rua dos Condes, viro à direita nas Portas de São Antão, vou à Casa do Alentejo (onde me perco o tempo que for necessário!), regresso à rua e paro no Eduardino para degustar o famoso licor. Depois vou engraxar os sapatos (que calcei propositadamente para o efeito!), enquanto fico ali a ver a vida passar.
Nos que por ali passam revisito muitos dos meus fantasmas. Os meus heróis literários do início do Século Vinte frequentaram estes mesmos locais e, provavelmente, também se sentaram ali a ver a vida passar enquanto lhes lustravam os sapatos.
E é aqui que quero chegar. O homem que me engraxa os sapatos na foto é o mesmo que o faz há mais de 40 anos. Chama-se Jorge, Jorge Henrique Lopes, para que se saiba, e é provavelmente o último dos seres humanos que revisito quando subo à capital.
Só que o faço e ele não sabe que o faço por sua causa. Nunca lho disse. Nem sequer tenho confiança suficiente para lhe falar destas minudências viscerais. Apenas falamos de banalidades. Banalidades que me sabem a tratados de filosofia, daqueles para salvar o mundo. E se hoje não salvar o mundo, nada está perdido. Pelo menos salvo-me a mim e tenho garantida uma ginjinha ali mais à frente, quando a Praça do Rossio se escancarar perante os meus olhos.
Obrigado Jorge por continuares a existir!

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