“<i>O absurdo só tem sentido na medida em que não consentimos nele.</i>”
Albert Camus, <b><i>O mito de Sísifo</i></b>
Nas mais macroscópicas e microscópicas escalas, o absurdo governa o mundo, e o mundo não parece incomodar-se muito com isso. O absurdo já não é o vómito da loucura de Calígula, nem a magia insidiosa ou hipnótica dos tiranos, nem a trágica contradição dos heróis. O absurdo é celebrado democraticamente: tolerado, aclamado, eleito e reeleito. E, ao contrário do que pensava Platão, o absurdo democrático já não triunfa por efeito da transfiguração retórica levada a cabo pelos sofistas, manipuladores do povo e da sua ignorância. Não. O absurdo é consentido como tal… a um ponto de, no limite, já não ser percepcionado como absurdo, ou, pior ainda, de fazer sentido como absurdo.
Quando se incorpora na sucessão dos dias e consegue repetir-se, reproduzir-se, o absurdo ganha a aparência da normalidade e a força da institucionalização e, surpreendentemente, impõe-se… domestica a realidade em seu favor. Torna-se, afinal, um padrão reconhecível. Mas há muitas formas de resistir ao absurdo, da sátira ao protesto social, e evitar que ele nos paralise de conformismo ou nos recrute como um dos seus cúmplices.
Muitos acreditam que a política devia ser uma espécie de antídoto contra o absurdo, evitando que ele e a irracionalidade que o emprenha se sobreponham à razoabilidade das coisas. Mas, infelizmente, a política parece estar cada vez mais ao serviço do absurdo, tomando-o como meio ou com fim. Ora, vem este enquadramento a propósito de assuntos locais sem ponta de dignidade filosófica, mas que não deixam de ser escancaradamente absurdos. Atentemos:
Qualquer adjectivo se afigura benevolente para qualificar o “processo Diário do Alentejo”. Já passou um ano desde que a maioria comunista na AMBAAL saneou o jornalista António José Brito (AJB) e instalou interinamente o assessor comunista Francisco do Ó Pacheco. Durante mais de um ano, este senhor manteve e mantém o jornal tal como estava antes da saída de AJB, apenas com uma “substancial” alteração (sejamos justos): entregou uma página inteira do jornal aos arrazoamentos hermenêuticos de um tal João do Ó Pacheco… Mas tudo é absurdo neste processo! A continuidade sem fim à vista de um director interino que se limita a “gerir” a herança de AJB; a desonestidade intelectual de autarcas que acusaram AJB de parcialidade política e que agora registam o pluralismo do “DA” e o bom trabalho do seu director (o que é um elogio quase directo a AJB e ao pluralismo que ele garantiu, visto que o jornal não conheceu quaisquer mudanças, exceptuando a “pachequeira” novidade já referida); e a espantosa anuência dos associados da AMBAAL com esta situação (salvo a louvável posição de Jorge Pulido Valente), dando cobertura política, com mais ou menos desabafos de cabeceira, ao dossiê rocambolesco do “DA”, “bem” sustentado com o dinheiro dos contribuintes, ao que se soma o “cancro” da Gráfica da AMDB-EIM.
E para não sairmos da AMBAAL, venha agora o absurdo do projecto Beja Digital, um projecto de cinco milhões de euros que tem a AMBAAL como proponente, e cuja valência visível foi a de ter mal parido um portal regional na Internet, uma espécie de “páginas amarelas” institucional, com conteúdos sofríveis e que se resume praticamente a uma colecção de <i>links</i>. Como os gestores deste projecto têm ainda o descaramento se revelarem publicamente que o projecto já apresenta uma taxa de execução elevadíssima, é mais do que absurdo que nenhum dos associados da AMBAAL e das várias entidades que são parceiras do projecto, tenham ainda vindo a público exigir uma rigorosa prestação de contas para se apurar onde foi enterrado tanto dinheiro.
Também já há mais de um ano que a Câmara de Beja “dispensou” o director da revista “Arquivo de Beja”, por motivo de um desempenho insatisfatório, e para que a revista ganhasse um novo fôlego, dada a sua importância no contexto local e regional. Passado este tempo, não se sabe quem é o novo director da revista e, já havendo novo director, o que é que ele andou a fazer durante um ano. Mais absurdo só mesmo se o director escolhido não perceber patavina do que seja dirigir uma revista…
E termino com um absurdo que ultrapassa as fronteiras da paróquia: a demagógica campanha eleitoral para o referendo sobre o aborto. De facto, os <i>portugas </i>adoram o folclore das eleições e campanhas eleitorais, e os partidos e seus acólitos não resistem à tentação do protagonismo, do oportunismo e dos “investimentos estratégicos” a médio-prazo… Uma causa tão séria merecia mais recatamento e contenção. Por absurdo, ao assistirmos a tamanha histeria propagandística, fartamente mediatizada, diríamos que são cargos e “tachos” que estão em jogo e não a alteração da lei face a um problema de saúde pública.