Agora que os anos se vão instalando no corpo, sulcos abrindo no rosto, a barriga se vai enfeitando de uma gravidez masculina e uma espécie de neve se vai amontoando, cada vez mais, no ponto mais alto de mim, lembro-me claramente – cada vez mais nitidamente – de ser pequeno.
Por exemplo, lembro-me do acordar das manhãs frias, pintadas de geada. O telhado de telha-vã como que estava suspenso entre mim e o céu. E por entre cada telha, o ar gelado trazia-me o som dos pardais acordando o dia.
As paredes brancas de taipa eram folhas grandes onde eu, de olhos fechados e absolutamente quieto, fazia desenhos e escrevia os nomes que a vida me ia ensinando.
A cama era um ninho feito de flanela, onde o meu corpo estava enterrado em mantas, samarras e contentamento.
E depois, lentamente, ia despertando para os cheiros e os sons da casa. Ouvia a minha avó na cozinha e sabia que ela estava vestida de negro. Nunca a vira de outra cor. A primeira vez que me perguntaram de que cor era a ternura eu respondi que era preta, de certeza por causa da minha avó.
Sentia o crepitar do fogo e adivinhava as chamas queimando as sombras do chupão. Os paus de azinho e de sobro rendiam-se ao calor e faziam-se brasas e sobre essas brasas uma cafeteira de barro ia dando vida ao café.
Na rua, uma carroça rangia nas pedras da calçada e naquela preguiça boa eu tinha a certeza que o mundo era bom e justo.
Depois deste despertar de veludo, pegava na mala castanha de fivelas douradas e punha-lhe tudo o que me pertencia, como quem vai viajar. E saía de casa enfiado numa bata branca, correndo à procura do mundo, só muito mais tarde aprendi a andar sem correr.
Sentava-me numa carteira e tirava de dentro da mala as riquezas da minha vida.
O quadro negro em frente tinha o dia e o mês escritos numa letra perfeita. Do lado direito um mapa pendia da parede e eu ficava vaidoso porque o nome da minha terra também lá estava. Em cima do estrado de madeira havia uma secretária pesada e em cima dela uma régua enorme esperava pelas mãos depois dos ditados.
E os livros tinham histórias de reis e de mouros e a tabuada era uma canção.
Os meus desenhos tinham sempre uma casa de lume aceso, árvores, ribeiras e pássaros. Coisas de quem nasceu e cresceu à beira do campo. Às vezes atrevia-me a pôr um carro no desenho, sempre chegando à casa de barras azuis. Nunca abalando.
A professora era a personificação dos nossos medos, das nossas coragens, dos nossos dramas e das nossas conquistas.
Sem eu saber, o mundo crescia dentro de mim.
E foi assim que nesses dias esplêndidos eu aprendi que é possível voar sem asas.
Foi assim. Por exemplo.

Francisco Orelha candidato do PS à Câmara de Cuba
O antigo autarca socialista Francisco Orelha, que liderou a Câmara de Cuba entre 1997 e 2013, vai voltar a ser o candidato do PS neste