Nos finais do ano de 1986, altura em que era capaz de jurar a pés juntos de que no panorama etno-musical da região baixo-alentejana nada mais já existia, com vitalidade digna de realce, do que o canto às vozes também conhecido por “cante” ou “moda”, tive conhecimento da existência, na Estação de Ourique, de um tocador e cantador que me disseram saber interpretar algo diferente daquilo que por cá se usava.
Foi assim que conheci, ouvindo cantar e tocar uma viola campaniça, o sr. Francisco António. Gravei, para divulgação na Rádio Castrense, uns quantos temas que pelo motivo da surpresa, pela autenticidade e pela excelência das peças, geraram em mim um enorme sentido de inquietação dada a responsabilidade que passava, a partir daquele momento, a ter entre mãos.
No mesmo dia, conheci também, na Funcheira, o sr. Manuel Bento e a D. Perpétua, que abrindo-me as portas, interpretaram mais meia dúzia de modas, deixando-me rendido e desde logo empenhado na promoção e na salvaguarda daquilo a que o José Alberto Sardinha chamou, com grande propriedade, “o outro Alentejo”. De facto, era e é o outro Alentejo que à data quase todos desconheciam e outros tantos tinham já esquecido.
No regresso a casa gizei formas de podermos, na Cortiçol, dar algum alento a esta realidade que era, obviamente, uma preciosidade cultural. A partir daí e até agora, pelo menos todas as quintas-feiras, na Rádio Castrense ouve-se tocar a viola campaniça, que através de parcerias e empenhos variados, voltou a ser construída entre nós e tocada por dedos jovens, deixando de ser um instrumento ignorado, descordoado e coberto de pó, só tocado ocasionalmente por dois ou três velhos mestres no isolamento de quatro paredes.
Mas não tardou em termos na estrada, correndo mundo e levando a campaniça e o encanto dos seus cantares a plateias primeiro curiosas e depois rendidas, desde os auditórios da Gulbenkian, em Lisboa, ao Teatro Carlos Alberto, no Porto, dos Açores ao Canadá, o “Grupo de Violas Campaniças” estruturado no âmbito da Cortiçol.
Por esta via, conheci também, pouco mais tarde, na Aldeia das Amoreiras, o sr. António José Bernardo, um talento, um homem para quem nada na sua vida estava à frente do canto de baldão, mas que infelizmente a morte levou cedo demais, deixando-nos ficar um imenso vazio. Foi ele, precisamente, quem me proporcionou no Verão de 1987 uma tarde inesquecível de espanto, de comoção e de grande admiração, quando me convidou para assistir em sua casa a um cante de baldão, organizado e oferecido às tensas de uma filha sua ter concluído o curso do magistério primário. De lá trouxe um novo desafio, que era tudo fazer para que o cante de baldão deixasse de ser só um pretexto para uns quantos cantadores se juntarem, de quando em vez e quase às escondidas, em exercícios de poesia repentista.
Foi através do programa “Património” que passámos a divulgar todos os cantos de baldão a que assistíamos e gravávamos, fazendo renascer o gosto generalizado por esta prática, ao ponto de passarem a ser os próprios cantadores a telefonarem, para divulgarmos em directo as suas cantigas. Ainda agora assim acontece.
Também, porque era necessário dar corpo, vitalidade e promover o empenho dos cantadores e dos tocadores de campaniça, a Cortiçol, com o apoio do Município, todos os anos, pela Feira de Castro, organiza um encontro e homenageia um dos artistas, escolhido pelos seus pares. E já se passaram vinte e muitos anos…
Mas porque é imperioso valorizar os actuais detentores deste saber e cativar outros mais novos para garantir a continuidade desta tradição, o que pode fazer o Poder Local, para valorizar e estruturar as iniciativas que aqui e ali têm vindo a ser experimentadas?
Apesar de não sermos adeptos da municipalização da cultura, entendemos que a continuidade desta tradição passa, inevitavelmente, por um empenho objectivo e concertado das autarquias em cujos territórios o cante de improviso existe. Sem a assunção dessa atitude por parte de quem pode influenciar positivamente a vontade dos actuais portadores da arte, estamos a aproximar-nos do colapso do cante repentista enquanto fenómeno cultural activo. Passaremos depois a ter, simplesmente, meia dúzia de intérpretes disponíveis para actuarem, ocasionalmente, em demonstrações de baldão e por um tempo limitado.
Ora sendo certo que esta tradição, apesar de estar ainda bastante arreigada nalguns lugares do nosso território, é evidente que lhe falta já o substrato cultural e humano para que sobreviva entregue ao acaso. Por essa razão, neste estado de emergência, é irrecusável o apoio autárquico, de molde a que não aconteça ao baldão a mesma sorte que o despique teve.
Plenamente conscientes de que toda e qualquer intervenção nesta área se reveste de uma enorme complexidade, achamos que tal circunstância não deve suster a acção e sugerimos a criação de grupos de trabalho de âmbito concelhio, com uma organização sub-regional, que passem a cuidar deste legado. Tais grupos de trabalho, com representação e coordenação autárquica, integrarão também representantes das associações culturais locais vocacionadas e representantes dos tocadores e cantadores, que numa perspectiva prática façam uma abordagem ao passado, ao presente e ao futuro desta tradição.
Ao passado, vão buscar a história, recolhendo memórias, dados e referências sobre o cante e os cantadores. Do presente colhem a realidade, fazendo um levantamento exaustivo dos actuais intérpretes. Para o futuro, perspectivam os cuidados a ter e as práticas a desenvolver de forma a ser garantida a continuidade desta prática cultural. E todo este trabalho deverá ser desenvolvido tendo-se a consciência de que é urgente fazer-se o elogio, reforçar-se a auto-estima, dar-se muito incentivo aos cantadores que ainda temos.
Por outro lado, é premente serem desenvolvidas acções de divulgação ao nível das freguesias, pensadas e coordenadas, visando a promoção e a valorização do cante dentro da sua área geográfica.
Finalmente, deve ser cuidada a passagem do testemunho, através da sua aprendizagem em ateliers de cante e de ensino da viola campaniça.
Concomitantemente, todo este trabalho deve ser perspectivado para além da sua vertente prática imediata, com o objetivo de ser assumido pelos parceiros um plano de salvaguarda para o nosso cante repentista e o registo do mesmo e dos toques à campaniça no inventário nacional do Património Cultural Imaterial.
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