Sou contra o aborto. Creio mesmo que não exista um único ser humano livre da demência que seja a favor do aborto. Um aborto é algo intrinsecamente negativo, é interromper um processo vital, é intervir clínica ou cirurgicamente no corpo da mulher, é uma decisão que os pais e, sobretudo, as mulheres, não tomam sem tristeza e ansiedade, sem dor e sofrimento. É sempre um acto dramático. Por muito que se queira aligeirar ou “naturalizar” a interrupção voluntária da gravidez, fazer um aborto nunca será para nenhuma mulher como ir tirar um dente. Fazer um aborto já é para a mulher um gesto suficientemente penalizador e cruel, e ainda mais quando envolto em acrescidas culpas cristãs e outras hipocrisias morais. Mas a lei portuguesa em vigor determina que isso não é suficiente. Ao drama pessoal e familiar, à condenação religiosa, moral e social, deve também juntar-se a mácula do crime.
Portanto, até ao limite das dez semanas, uma mulher que não deseja prosseguir, pelos motivos que a sua consciência e autonomia deliberativa consideram, e que ninguém tem o direito de julgar, com um processo orgânico que se desenvolve dentro do seu corpo, ou tem a sorte de ter sido violada, ou tem a sorte de uma malformação do feto, ou tem a sorte dessa gravidez ameaçar a sua vida, ou então, caso tenha o azar de ser pobre e não poder “comprar a sua inocência” numa clínica espanhola, arrisca-se a ser esventrada por uma “parteira” artesanal, ou a induzir o aborto enfiando mil porcarias pela goela abaixo, ou a ser brindada com um processo judicial, de forma a ver a sua vida íntima ainda mais devassada pelos corredores dos tribunais e nos títulos dos abutres da comunicação social.
Sim, porque fazer um aborto não é um acto suficientemente penalizador para a mulher, há que expô-la publicamente, apedrejá-la e, gloriosamente, prendê-la. Há que destruir mais uns pedacinhos da vida dessa mulher, porque a sua culpa não tem redenção possível. Há até, se se conseguir recrutar algumas bestas, fazer uma romaria pelo bairro dessa mulher infame e chamar-lhe assassina. Há até que despedi-la do emprego cristão. Há que fazer uma propedêutica anti-aborto, e assim dissuadir todas as potenciais prevaricadoras, ou educá-las pelo medo e pelo estigma. Ou condenar mães jovens e ignorantes a uma maternidade irresponsável e revoltada, ou condenar crianças a uma vida de desamor e infelicidade.
Sou contra o aborto, tão radicalmente quanto sou a favor da liberdade de escolha das mulheres que sejam a favor ou contra o aborto. Tão radicalmente quanto seria contra uma hipotética lei que obrigasse as mulheres a engravidarem, a parirem filhos aos cachos, ou as obrigasse à esterilização ou até a abortarem por razões demográficas e económicas. Tão radicalmente quanto sou contra uma lei que criminaliza quem se sinta dolorosamente justificado ao abortar, mesmo que isso seja, aos olhos de todos os outros, injustificado. Porque não são as razões dos outros que uma mulher convoca quando decide abortar ou não, por isso, não deve a eles submeter justificação. Porque não é o valor da vida que está em questão, é o valor da liberdade individual e da autodeterminação sobre o nosso próprio corpo. É, se quisermos, o direito a que estes princípios “vivam” no nosso sistema penal.
Sou pois pelo direito à vida. À vida que as mulheres queiram dar à luz como uma escolha sua, consciente ou não, informada e esclarecida ou não, desejada inicialmente ou acidental, mas, sempre, como uma escolha sua. Esta vida “autorizada” ou consentida ou muito ansiada pela mãe, ganha agora todos os direitos da vida consumada, entre eles os direitos que lhe confiram bem-estar, assistência, protecção, dignidade. Serei, mais correctamente, pelos direitos da vida: sociais e económicos, cívicos e políticos, de personalidade.
Sou pela vida dos que dela se vêem de direitos privada, arrastados na miséria e na desgraça de tantos abortos que não se fizeram porque nem contraceptivos havia para os evitar.
Sou pelo direito que uma vida tem a decidir dar direito a outra vida.
Investissem os “criminalizadores” do aborto uma ínfima parcela da sua energia e empenho na defesa das vidas que já existem, algumas tão precárias e frágeis, e talvez o mundo fosse um pouco melhor. Um pouco melhor às vezes é o suficiente para que uma mulher deseje trazer um filho a este mundo.
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