Hesitei muito antes de decidir escrever este texto. Sendo eu professor, é enorme, quase hercúlea, a dificuldade com que me deparo ao ousar discorrer sobre o assunto em epígrafe. Versasse ele sobre Justiça ou Saúde, apenas para dar exemplos de outros temas estruturantes da nossa sociedade, a minha abordagem ficaria extremamente facilitada e seria indubitável, sobranceira, descomprometida, ligeira, sustentada apenas no lançamento de duas ou três larachas, em opiniões emocionais e parca em argumentos. Deste modo, com o fardo da profissão às costas e o eterno anátema das longas férias e do pouco trabalho, fazendo parte do lote dos homens e das mulheres que chumbam ou não chumbam alunos e conhecem as consequências reais de uma e outra decisão, estando eu tão próximo da questão e tão envolvido no processo há mais de três décadas, afigura-se-me que, por ser juiz em causa própria, serei incapaz de chegar a uma explanação consistente que venha acrescentar alguma coisa de útil e válida ao que jornalistas, políticos, comentadores televisivos, atiradores furtivos nas redes sociais, cidadãos comuns e outros de outra estirpe, já debitaram sobre a matéria. Ainda assim, vou tentar dar o meu humilde contributo.
Devem os alunos progredir sem terem atingido as aprendizagens essenciais de um determinado ano ou de um determinado ciclo? Obviamente que não. O sentido de justiça, lealdade e respeito pelos critérios de avaliação definidos por um país que se quer sério e responsável não nos deve permitir cometer essa atrocidade sob pena de, socorro-me do texto do “Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória”, andarmos a criar cidadãos que não sejam capazes de “analisar e questionar criticamente a realidade, avaliar e seleccionar a informação, formular hipóteses e tomar decisões fundamentadas no seu dia-a-dia; conhecer e respeitar os princípios fundamentais da sociedade democrática e os direitos, garantias e liberdades em que esta assenta”. A Escola estaria a prestar um péssimo serviço social e o preço a pagar seria obviamente demasiado alto.
Faz sentido que um aluno repita um determinado ano de escolaridade sem que sejam alterados os pressupostos que contribuíram para o seu insuficiente grau de competências, conhecimentos e capacidades? Claro que não. Raramente acontece que um aluno por si só “veja a luz” e se transforme de Junho para Setembro. O que diz a regra da repetência, aparentemente tão justa e tão democrática para descanso das nossas consciências, é que integrar o aluno numa nova turma e repetir conceitos, conteúdos, matérias, forçá-lo a realizar as actividades e os testes nos quais falhou, é quase sempre tempo perdido. Porque o professor não consegue dedicar-lhe mais tempo para suprir as lacunas que persistem, porque o aluno, amiúdes vezes, é fruto de uma complexa mistura de problemas que concorrem directa ou indirectamente para a sua reprovação. Muitas vezes, quase sempre, a tónica é posta no aspecto cognitivo, quando a maior parte das vezes o que existe é um emaranhado social e familiar que o define e o trava comparativamente aos seus colegas.
Deve então um aluno transitar sempre para o ano seguinte apesar de não ter adquirido as competências essenciais, assumindo a Escola, através dos seus docentes, apoios, serviços e gabinetes, fazer o acompanhamento da recuperação do aluno, quer dos conteúdos não consolidados no ano anterior, quer dos conteúdos do novo ano de escolaridade? As duas coisas ao mesmo tempo? Será isso que vai acontecer, será este o princípio das novas normas de transição e aprovação no ensino básico? Se assim for, isso poderá ser um problema. A realidade das escolas, leia-se parcos recursos, não o permitirá concretizar de uma forma efectiva e produtiva. E se não o conseguir, se a decisão for simples retórica e unicamente letra da lei, então andaremos iludidos e dificilmente conseguiremos explicar aos restantes alunos, aos pais, às comunidades e à sociedade em geral, que todos por atacado, independentemente do esforço, dos compromissos, das competências e dos resultados, serão premiados de igual modo.
Não quero crer, por defender uma Escola competente, exigente criteriosa e formadora de cidadãos activos, responsáveis e íntegros, que a aventada “passagem administrativa” alguma vez venha a ter lugar.
Os que não conseguem só por si têm o direito de ser ajudados? Têm inequivocamente, aliás a igualdade de oportunidades é um dos fundamentos da escola pública.
Diz a lei que reprovar um aluno deve ter um carácter excepcional. E deve. Tudo deve ser feito para impedir que um aluno fique retido, os ganhos dessa retenção, está provado, são diminutos.
É pois preciso dar um novo passo, assumir que a retenção nos moldes em que existe não promove o sucesso escolar e muito menos prepara para o exercício da cidadania. Como fazê-lo sem hipotecar a qualidade e a exigência do ensino é o grande desafio e não serão análises superficiais, estudos comparativos com outros países cuja alfabetização plena existe há mais de um século e onde há uma homogeneidade social, a verve dos nossos parlamentares, tricas políticas, ideologias partidárias ou bitaites que irão resolver o problema. O problema é mais profundo, a montante estão falhas sociais e familiares que a Escola, a jusante, só por si não consegue resolver. Não é coincidência que os alunos que mais reprovam sejam provenientes de estratos sociais e económicos mais desfavorecidos.
Atribuir unicamente ao sistema educativo a resolução de um problema tão amplo é uma ilusão.
Perante teste de tal complexidade temo que as escolas continuem a chumbar.
Cercicoa tem nova resposta social para pessoas com deficiência
A Cercicoa, com sede em Almodôvar, tem a funcionar desde esta semana o seu novo Centro de Atendimento, Acompanhamento e Reabilitação Social para Pessoas com