A vida. Tão pesada é a vida! Que injusto é acordarmos todos os dias dentro de nós, no fundo do nosso peito, inquietos, ensonados, profundamente diferentes do sonho que tivemos. Muitas vezes nada em nós nos impele para nos levantarmos animados e espreitarmos o sol, ouvirmos a alegria desmedida dos pássaros, acreditarmos que tudo de bom vai acontecer, prepararmos o pequeno-almoço e comermos com apetite.
Que bom era poder não ter peso nem compromissos. Poder eternamente ficar metido no útero da cama.
Presos na gaiola do corpo, pesando quilos de carne e melancolia, somos moscas batendo no vidro de uma janela fechada.
Que bom era às vezes não termos corpo.
Nesse dia não acordou, como em todos os outros dias dos últimos 30 anos, na sua cama ao lado da mulher. Procurou-se no quarto todo e não se encontrou. Estava lá tudo: a mulher, a cama, os lençóis, os chinelos de quarto, o livro que lera na noite anterior. Tudo menos ele. Ou, dizendo melhor, o seu corpo.
Para acordar necessitava de achar o corpo, esse elemento físico que reage ao toque do despertador e fica mais uns minutos a dormitar estremunhado, de olhos mal dormidos, recusando fazer frente à faca de luz apontada pela fresta do cortinado.
O despertar é uma coisa corpórea, uma ignição lenta de sangue, uma combustão gaga dos sentidos, uma madorna horizontal de cabelos despenteados e olheiras.
Olhou para o relógio. Já tinha expirado o luxo dos dez minutos que concedia a si próprio antes de pôr os pés no chão para ir repisar a sua rotina quotidiana.
Tentou mexer as pernas, os braços, os dedos. Em vão. Quis falar, chamar a mulher, mas sentiu o vazio a pôr-lhe uma mordaça na boca.
Tentou tocar-se, empurrar os lençóis, ligar o rádio, acender o candeeiro, tossir. Nenhum destes intentos surtiu qualquer efeito.
Era absolutamente inconsequente. Não ocupava espaço. E por isso sorriu.
Conseguira – finalmente – desfazer-se do corpo. Não aparecer no espelho, não ter de escolher roupa, nem de contar as rugas, nem de acomodar os medos que já não cabiam no coração, nem ter de sair para enfrentar a vida.
Era um sonho antigo. Desde que ganhara capacidade de abstração, consolidada por dois anos de filosofia na escola, que almejava desligar-se da parte física da sua existência. O corpo sempre fora uma maçada, uma inutilidade, um fardo, um peso mal vestido que ele arrastava sem graça pela vida fora.
Que bom ser tão só pensamento. Poder alhear-se de si e apenas existir como uma ideia, um conceito, uma preguiça a pairar sobre a realidade como uma fina neblina.
Que bom ter escapado aos compromissos, às reuniões, aos horários, ao terrível destino de homem comum.
Como uma borboleta que se liberta do casulo e voa nas cores do vento.
Quando a mulher o foi acordar, sonhava que era um pássaro vadio a planar num perfeito céu azul.