Ainda me lembro, como se fosse hoje, da sua chegada lá a casa.
Era azul. De um cintilante azul celeste. Brilhantes cromados que quase ofuscavam o olhar. Meu pai, orgulhosamente montado na sua nova bicicleta acabadinha de adquirir em Castro Verde, rejubilava de alegria (mesmo que a última prestação do pagamento da máquina fosse só daí a doze meses).
Lembro-me que tinha espelho retrovisor, campainha e guarda-lamas. A ténue luz dianteira era alimentada a dínamo: quando encostado à jante da roda da frente, girava de modo a que se produzisse o fio de luz que lhe alumiasse o caminho.
Num dos lados do quadro, a inevitável bomba de ar, sempre necessária para encher os pneus da roda vinte e oito daquele estonteante veículo.
Pendurado no selim de molas, estava a balouçante bolsa de ferramentas e utensílios, equipamento necessário à reparação dos inevitáveis e frequentes furos.
Quando o meu pai regressava do trabalho, especialmente em tardes de Verão, levava-me a dar uma volta montado no suporte. Eu, pequenito, agarrava-me à sua cintura, como se quisesse abraçar o mundo e, a cada pedalada, viajava-me a imaginação para lá das aforas do permitido. A sonhar, claro está.
Dessa “pasteleira” guardo as melhores recordações. Foi nela que ainda míngua de gente aprendi a andar de bicicleta. Como não as havia para crianças, a maralha miúda lá da minha terra aprendia a equilibrar-se nestes gigantes de duas rodas, enfiando parte do corpo por dentro do quadro, o tronco quase fazendo um V de modo a criar uma forma de balanço estável, a cabeça junto ao guiador, e as mãos, muito a custo, chegando às manetes do guiador.
Depois de muitas quedas, alguns puxões de orelhas e outras tantas tareias, lá chegava o dia em que joelhos e cotovelos descansavam e nós ganhávamos asas em forma de rodas.
Estas bicicletas, a par dos carros de bestas, povoavam a paisagem e, ainda hoje, a memória de muitos de nós.
Foi numa destas bicicletas que Joaquim Agostinho se fez ciclista. João Roque, Leonel Miranda e companhia, da equipa do Sporting Clube de Portugal, em dia de treino lá para as bandas de Torres Vedras, foram surpreendidos por aquela força da natureza. Montado naquele “ferro”, sem mudanças nem caganças, acompanhava-os nas descidas e ultrapassava-os nas subidas, causando o espanto desses ídolos de então, que só descansaram quando o levaram para a sua equipa.
À minha porta passa todos os dias um velhote montado naquela que seguramente será a sua bicicleta de sempre, uma pasteleira igualzinha à do meu pai, só que de outra cor. Pedala quando o terreno é a favor, mas quando chega às subidas desmonta, alçando a perna com a máquina ainda em movimento. E continua a pé, porque os seus mais de oitenta anos já lhe consumiram grande parte das forças.
Na semana passada dei com ele desbastando umas enormes canas que colhia num canavial à beira da estrada. Vi-o amarrar talvez uma dúzia de canas, montar-se na bicicleta e colocar o molho debaixo do braço esquerdo, apenas guiando com a mão direita.
Passou à minha porta. Não, não vi um ciclista carregando um feixe de canas debaixo do braço. Vi, sim, um cavaleiro andante montado no seu corcel, investindo com a hipotética lança de doze setas contra um inimigo imaginário. Ah, a idade… esse temível adversário.
Há alguns anos, no final de um desses verões de estalo, aquando da Planície Mediterrânica em Castro Verde, houve o habitual encontro de velhas bicicletas (não confundir com bicicletas velhas!), vulgo “pasteleiras”. (A esse evento, o meu amigo Filipe Pratas tem dedicado tempo e alma, redundando em certames que desde então se repetem anualmente.)
Foi então que revi, num determinado ciclista que passava, o meu pai! O meu pai chegando a casa. E eu! Eu, sentado no poial, com a cara entre as mãos, à sua espera. E ele a dizer-me.
– Suba já o meu filho aí para o suporte que vamos dar a volta à vila.
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