A Morte

Sexta-feira, 29 Novembro, 2024

Vitor Encarnação

Escritor

Há setenta e cinco anos que não falha um funeral. A alguns chegou a ir já mais morta do que viva, mas ninguém lhe pode pôr um velório, um que seja, em cara.
A primeira vez que acompanhou um corpo era ainda nova. O avô morrera a dormir tinha ela quinze anos. Nessa noite acordou sobressaltada, mordida pelos gritos da mãe e da avó. Gritavam porque a foice negra entrara sem fazer barulho nenhum e ceifara uma vida, ali mesmo na cama onde dormia. Não havia mais nenhum homem vivo lá em casa. Apenas quatro mulheres, ela, a mãe, a avó e a morte. Nunca tinha visto ninguém morto, mas quando se dirigiu para o quarto de cama dos avós não tinha medo. Sentia até um impulso, um apelo que a puxava para a aura de luz do candeeiro a petróleo. O avô estava tal e qual. Era como se a morte tivesse passado por ali e só lhe tivesse levado o ar. Tocou no corpo, estava frio, parecia que as mantas tinham perdido a sua função, eram ocas e vãs. Vestiu-lhe o fato que estava guardado no baú e quando acabou de atar os sapatos, já um cheiro a naftalina se tinha pendurado na lividez do cadáver.
Esteve sempre ao lado do avô respirando de mansinho como uma vela de sebo.
Afinal a morte não era como nas histórias à lareira, afinal não era uma adaga empunhada pelas mãos das trevas, não vinha enrolada numa capa, não era um esqueleto batendo à porta dos enfermos.
O primeiro encontro dela com a morte foi justo e sereno.
E assim iria ficar para toda a vida.
Não consegue ver tragédia na morte. Não a acusa de nada, não tem sequer medo dela. Sabe que não vale a pena ter portas e janelas fechadas, pois ela entra quando chegar a hora. Quando tiver que vir.
E agora, com noventa anos, está mais do que preparada.
Salvo as devidas diferenças e o eventual despropósito da comparação, ela foi assim a modos que uma parteira da morte. Assim que esta estava para nascer no corpo das pessoas, ela era chamada. Ia o padre e ia ela assistir à chegada da morte. Duas diferenças fundamentais eram notórias. Neste caso quem gritava e quem chorava eram os familiares.
Depois da extrema-unção, quando o padre se ia embora, ela ficava, vestia uma bata banca e o ar começava a cheirar a naftalina.
E quando a morte vinha e lhe caía nos braços, ela fechava- lhe os olhos, lavava-a, penteava-a, vestia-a, calçava-a.
Tudo com muito cuidado para o silêncio não se partir.
Quando chegava o caixão, esse casulo que nunca mais abriria, e, afogados em dor, os familiares se refugiavam na cozinha ou no quintal, ela arranjava-o com o mesmo esmero com que uma mãe arranja um leito para um filho dormir um sono descansado.
De tantas vezes vir, a morte conhecia-a. Conhecia-lhe as mãos aveludadas com que ela dobrava as mortalhas, com que dava os nós perfeitos nas gravatas, com que fazia a barba, com que cortava as unhas, com que disfarçava as feridas, as cicatrizes, com que alma ela tratava da carne e dos ossos.
Fez o mesmo ao marido e a um filho que morreu no ultramar.
O marido também morreu em casa. Talvez fosse apenas mais justo que tivesse morrido na taberna. Foi lá que a morte o apanhou, a retalho, a prestações de copos de vinho. Ela não se admirou. A maior parte das vezes, a morte tem lógica, nós é que não queremos crer. Vestiu o marido como se fosse domingo de manhã. Como se o homem fosse ao largo dar uma volta. Como se a vida estivesse à espera do almoço.
O filho morreu em Angola. Talvez fosse apenas mais justo que tivesse morrido em casa. Ela não se admirou. A maior parte das vezes a morte tem lógica. O que lhe causou mais estranheza foi o tempo de espera. Quem lhe dera poder tê-lo logo ali, para o sentir no colo, para o poder vestir, para lhe disfarçar o buraco da bala. Mas esta morte era de longe e não a conhecia. Não sabia que aquelas mãos tinham um pacto com a suave eternidade. E por isso mandou-lhe o filho dentro de um envelope de chumbo. Foi o único corpo que não viu.
Quando os corpos deixaram de ser velados em casa, foi ela que ficou com as chaves da casa mortuária. É a guardiã dos finados e das coroas de flores. Vai à frente do carro funerário, é a guia do luto, a pastora dos cordeiros de Deus, a ligação entre este mundo e o outro, a mensageira que entrega as almas aos santinhos.
Gosta do que faz. Está de bem com a vida e com a morte.
É um dom de veludo, um equilíbrio inacessível ao comum dos mortais. Tocou tantas vezes na morte que é como se fizesse festas com ternura a um gato ou a um cão. É apenas um toque mais frio.
Mas já lhe vai sendo mais difícil vestir os corpos e descer a rua até ao cemitério.
A morte já lhe disse qualquer coisa ao ouvido.
Mas nem era preciso. Quando conhecemos bem o outro basta um olhar.
O dinheiro para o funeral está na gaveta da mesa-de-cabeceira.
A roupa, na primeira gaveta da cómoda.
Só espera que a saibam vestir com ternura.

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