A morte dos cravos

Vitor Encarnação

Escritor

A anunciada morte dos cravos não é de hoje nem de ontem. A doença já se manifesta há muito tempo e o seu estado de saúde tem sido periclitante por causa de ataques de outras espécies hostis, mas principalmente por culpa dos seus maus cuidadores, leia-se, maus intérpretes da democracia. E não têm sido poucos.
Lembrei-me de uma pequena história para crianças e adolescentes – pensava que os adultos já a sabiam, mas enganei-me – que escrevi em 2009:

O cravo que não sabe o que foi o 25 de Abril
Na aula de História, um cravo jovem, daqueles de calça descaída, telemóvel 4G, brinco na orelha esquerda e sempre online, não soube dizer o que é a liberdade.
Um cravo dos mais velhos, professor com barba e cabelos brancos, zangou-se com o irresponsável desconhecimento que o cravo mais novo tem do 25 de Abril.
Pelos gritos e descomposturas, pode dizer-se que na aula houve uma revolução de todo o tamanho.
E depois, o cravo, que já viveu muitas primaveras, ainda foi desabafar na sala dos professores: Não é possível! Esta geração de cravos está perdida. Estes cravos miúdos já não respeitam a História e só ligam aos telemóveis. Estas flores de agora já não cheiram a democracia!
O cravo jovem, tatuagem no caule e gel nas pétalas, até tem visto umas fotografias da revolução de Abril. E mais, o seu avô é bem famoso. É ele o cravo que está na espingarda do soldado.
O problema é que o avô se esqueceu de contar ao filho como foi a luta pela liberdade, e por isso o pai deste cravo já não lhe soube explicar o que foi o 25 de Abril.
Moral da História: A memória é curta e para não desaparecer tem de ser transmitida cravo a cravo.

Mas a memória não foi transmitida cravo a cravo. Falhámos todos, as famílias, a escola, as instituições, os partidos políticos, os governos.
Costumo dizer que a vida em democracia é uma coisa demasiado séria para ficar só entregue aos partidos políticos. Mas foi isso que nós fizemos ao longo destes anos, abandonámos a nossa responsabilidade individual e, ingénuos ou indiferentes, confiámos que os partidos seriam capazes de ser os fiéis depositários dos nossos sonhos e das nossas realizações. Entregámos-lhes as chaves da democracia e entregámos-lhes o jardim dos cravos. Mas eles não souberam fazê-lo como nos disseram que o iam fazer. Não cuidaram, não acautelaram, não cumpriram, não regaram.
E agora aqui estamos nós neste cemitério de cravos, uns chorando a sua morte, outro gozando com a sua morte.
Em maio de 2025, são já muito menos aqueles que choram à beira da sepultura.
Mas não vale a pena amuar, levar as mãos à cabeça, erguer as mãos aos céus, bater no peito, rasgar as vestes, publicar frases revolucionárias emblemáticas, gritar palavras de ordem, desamigar pessoas nas redes sociais ou chamar fascistas a todos os que não estão no cemitério dos cravos.
Não, isto é tudo muito mais complexo. Quantos dos que choram agora se preocuparam verdadeiramente, através de atitudes e exemplos, em alimentar e fortalecer os ideais de liberdade? Quantos dos que agora se indignam transmitiram a memória cravo a cravo?
Se cada um de nós tem de pôr a mão na consciência para tentar perceber porque morrem os cravos, imaginem o peso de consciência que os partidos políticos devem ter!
Os partidos políticos, principalmente os perdedores, têm de fazer uma reflexão profunda e reposicionar o seu foco no cidadão e na coesão territorial e social e não existirem como uma organização de pessoas alienadas da realidade, que usam o escudo da democracia para fazerem os seus jogos palacianos, impulsionarem as suas carreiras e alimentarem os seus egos pessoais. É isso que tem acontecido e a ferida está aberta.
Curá-la vai doer muito e demorará muito tempo.
Tudo na vida tem uma causa e uma consequência e tudo na vida é fruto de uma circunstância. Esqueçam as lições de história e da história, esqueçam a argumentação, o debate, a capacidade de interpretação, o humanismo, isso está quase tudo morto como os cravos, troquem isso tudo por redes sociais, por algoritmos, por inteligência artificial, por fake news, por discursos encurtados, por textos gramaticalmente incorretos (já repararam que o ódio escreve tão mal!).
Os tempos são outros, pôr um cravo na lapela e cantar a “Grândola Vila Morena” já não chega.
Eu não fui ao cemitério dos cravos porque acho que é precoce e desajustado declarar a morte dos cravos. A vida ensinou-me a ter dúvidas para, uma vez dissipadas, poder concluir de uma forma mais consistente, para ficar mais convicto das minhas certezas. E isso implica entender as razões de quem já não sente o perfume dos cravos, requer atravessar para o outro lado e tentar descobrir em que ponto as pessoas deixaram de acreditar no dia inteiro e limpo, em que ponto se partiu a memória.
Diz-se que é aqui no sul, terra da maior dor e dos horizontes mais negros em tempos de ditadura, que a memória mais se partiu. Mas se calhar, de uma forma mais moderna, mais disfarçada de Internet, ainda é aqui o sítio onde Portugal menos se cumpriu.
O território que já foi o maior jardim de cravos é agora o maior cemitério de cravos.
E os intelectuais invocam razões, os analistas políticos fazem conjeturas e inventam teorias, os políticos emudecem, os jornalistas tentam arranjar provas e factos.
E o novo partido que não gosta de cravos cresce cada vez mais. Cresce porque, independentemente da forma, traz o conteúdo que as pessoas querem ouvir: corrupção, insegurança e imigração. Cavalga estas palavras porque descobriu que elas são o cerne da questão. Cavalga estas questões porque sabe que as pessoas que sentem esses problemas e não têm voz ativa, para além do voto nos partidos tradicionais que se tem revelado continuadamente inconsequente, se vão agarrar à mensagem mesmo que o mensageiro não goste de cravos e queira acabar com quem gosta de cravos.
Entre um cravo e um comboio, as pessoas preferem o comboio, entre um poema de abril e as estradas arranjadas, as pessoas preferem as estradas arranjadas, entre um belo artigo da Constituição e um médico, as pessoas preferem o médico, entre um discurso bonito e redondo e um discurso securitário e punitivo, as pessoas já preferem o segundo porque estão cansadas do primeiro.
Ao analisarmos os resultados eleitorais e as circunstâncias sociais, económicas e demográficas inerentes a determinados concelhos da nossa região, talvez não fiquemos de boca tão aberta, talvez entendamos um pouco melhor as causas e as consequências e por que razão o populismo triunfa.
Talvez tudo se resuma a uma frase que um homem disse na televisão:
“No tempo do Salazar não podíamos falar. Agora que podemos ninguém nos ouve”. E se calhar basta alguém fazer de conta que ouve para que as pessoas acreditem.
É desproporcional e despropositado dizer que um milhão e não sei quantas mil pessoas que votaram no partido que não gosta de cravos são fascistas. Ao dizermos isso estamos a generalizar, fazendo o mesmo que acusamos nos partidos extremistas. Desse número imenso, eu conhecerei diretamente algumas centenas. E se é certo que alguns são saudosistas do regime do Estado Novo, não precisam de o esconder, tão bela e benevolente é a democracia, a grande maioria não leu uma linha do projeto político do partido que não gosta de cravos, vota apenas por protesto ou vota porque é seduzido por uma oleadíssima máquina de fazer pessoas de bem.
A liberdade de escolha é o princípio de toda a liberdade. Os eleitores escolheram um caminho, iludidos ou não, optaram por um rumo, havia vários quadrados no boletim de voto que a democracia lhes ofereceu e eles fizeram a cruz no quadrado que lhes pareceu ser o melhor. Se a cruz vai ser ou não muito pesada, o tempo o dirá.
Compete agora aos que não acreditam nesse rumo desmontar a falácia.
Chorar, entrar em pânico e enterrar já os cravos não é seguramente a melhor solução.

Post scriptum – A vertigem e a adrenalina do momento são apenas a espuma dos dias. Mais cedo ou mais tarde, a razão amadurece e reposiciona tudo.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima