A indisciplina dos deputados

Vitor Encarnação

Escritor

Quando decidi ser professor, para além dos direitos constitucionais e profissionais que me assistem, guiado por um código deontológico e regido por um estatuto, assumi também um conjunto de deveres.
Independentemente da disciplina que leciono, para além da componente científico-pedagógica inerente, está patente na minha atividade quotidiana uma dimensão formadora e transmissora de princípios e valores.
Entendo que um bom conhecimento científico deve estar sempre associado a uma equilibrada conduta moral marcadamente humanista.
Não pretendo substituir os pais na educação que dão aos filhos, apesar de tal já ter acontecido em situações dramáticas, mas não abdico de participar na construção efetiva de cidadãos, sempre com o cuidado de não impor ideologias ou verdades absolutas, mas, ainda assim, fazendo uso de um juízo crítico quando entendo que o rumo está minado por dormência, indisciplina, intolerância ou ódio.
Contudo, confesso que já tive mais ânimo para o fazer, já acreditei mais do que acredito agora em todo esse empreendimento de estruturação de indivíduos que visa, em última instância, dotá-los de capacidades de interpretação do mundo que os rodeia, de grandeza de espírito para dialogarem quando não concordam, da aptidão de fazerem uso da liberdade de expressão sem ofenderem, da nobreza de saberem viver em democracia. Às vezes acho que é um esforço inglório, uma demanda inútil, porque a vida mostra-nos todos os dias que os exemplos não vêm de onde, obrigatoriamente, deviam vir.
Se há sítio que devia congregar grandeza de espírito, diálogo na discórdia, liberdade de expressão civilizada, esse lugar é a Assembleia da República.
O que por lá se passa destrói todos os pilares da educação.
É absolutamente vergonhosa a forma como alguns deputados e algumas deputadas exercem o seu mandato. Protegidos por uma bolha de impunidade e de inimputabilidade roçam a boçalidade mais primitiva e mais rasteira. E nesse registo infame aplaudem-se uns aos outros e cá fora, com a adrenalina ideológica no máximo, também há quem os aplauda e replique as suas ações e as suas palavras.
Mas, ao que parece, não há um regulamento que enquadre a atuação dos ilustres representantes da nação e penalize comportamentos e adjetivações que estropiam a dignidade humana. E, em teoria, até se percebe que esse regulamento não fosse necessário, pois estamos a falar dos digníssimos representantes do povo, supostamente a mais fina estirpe dos portugueses, os mais capazes, os mais cultos, os mais nobres. Ninguém, em boa verdade, imaginaria tamanhos dislates profusamente proferidos na casa da democracia.
Portanto, se calhar é mesmo necessário criar um documento para limitar atoardas e alarvidades.
No dia 5 de setembro de 2012, a Assembleia da República, nos termos da alínea c) do artigo 161.º da Constituição, aprovou a Lei nº51/2012, decretando o Estatuto do Aluno e da Ética Escolar, que estabelece os direitos e os deveres do aluno dos ensinos básico e secundário. Como se dirige a adolescentes, com exceção de alguns vocábulos que o legislador quis manter mais herméticos e dúbios, a linguagem é muito simples e acessível.
Para mais, todos os deputados têm filhos, netos ou sobrinhos que são diariamente objeto deste diploma legal e, sobretudo, alguns dos deputados e das deputadas já o devem ter usado de forma diligente no âmbito da sua profissão, e certamente, vão utilizá-lo novamente quando regressarem ao seu mister de professores/formadores/pedagogos.
Aqui vão alguns excertos do estatuto do aluno e respetivas alterações que eu proponho que venham a fazer parte desse regulamento:
“Artigo 6.º Valores nacionais e cultura de cidadania
No desenvolvimento dos princípios do Estado de direito democrático, dos valores nacionais e de uma cultura de cidadania capaz de fomentar os valores da dignidade da pessoa humana, da democracia, do exercício responsável, da liberdade individual e da identidade nacional, o aluno tem o direito e o dever de conhecer e respeitar ativamente os valores e os princípios fundamentais inscritos na Constituição da República Portuguesa, a Bandeira e o Hino, enquanto símbolos nacionais, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, enquanto matrizes de valores e princípios de afirmação da humanidade. “
Só tem de substituir a palavra “aluno” pela palavra “deputado”, o resto aplica-se na totalidade.
“Artigo 10.º Deveres do aluno O aluno tem o dever, (…), de: (…) d). Tratar com respeito e correção qualquer membro da comunidade educativa, não podendo, em caso algum, ser discriminado em razão da origem étnica, saúde, sexo, orientação sexual, idade, identidade de género, condição económica, cultural ou social, ou convicções políticas, ideológicas, filosóficas ou religiosas. (…) g). Contribuir para a harmonia da convivência escolar e para a plena integração na escola de todos os alunos; i). Respeitar a integridade física e psicológica de todos os membros da comunidade educativa, não praticando quaisquer atos, designadamente violentos, independentemente do local ou dos meios utilizados, que atentem contra a integridade física, moral ou patrimonial (…)
Só teríamos de mudar duas palavras: “Aluno” passaria a “deputado”, “ comunidade educativa “ a “Assembleia da República”
Artigo 23.º Participação de ocorrência 1 — O professor ou membro do pessoal não docente que presencie ou tenha conhecimento de comportamentos suscetíveis de constituir infração disciplinar deve participá-los imediatamente ao diretor do agrupamento de escolas ou escola não agrupada. 2 — O aluno que presencie comportamentos suscetíveis de constituir infração disciplinar deve comunicá-los imediatamente ao professor titular de turma, ao diretor de turma ou equivalente, o qual, no caso de os considerar graves ou muito graves, os participa, no prazo de um dia útil, ao diretor do agrupamento de escolas ou escola não agrupada.”
Onde se lê “professor”, deve ler-se “líder parlamentar”; onde se lê “aluno”, deve ler-se “deputado”; onde se lê “diretor”, deve ler-se “Presidente da Assembleia da República”.
“Artigo 24.º Finalidades das medidas disciplinares (…) 2 — As medidas corretivas e disciplinares sancionatórias visam ainda garantir o normal prosseguimento das atividades da escola, a correção do comportamento perturbador e o reforço da formação cívica do aluno, com vista ao desenvolvimento equilibrado da sua personalidade, da sua capacidade de se relacionar com os outros, da sua plena integração na comunidade educativa, do seu sentido de responsabilidade e da sua aprendizagem.”
Novamente: “ aluno” por “deputado”.
“Artigo 28.º Medidas disciplinares sancionatórias (…) 2 — São medidas disciplinares sancionatórias: a) A repreensão registada; b) A suspensão até 3 dias úteis; c) A suspensão da escola entre 4 e 12 dias úteis; d) A transferência de escola; e) A expulsão da escola.”
Onde se lê “escola” deve ler-se “ Assembleia da República”.
“Artigo 40.º Responsabilidade dos alunos 1 — Os alunos são responsáveis, em termos adequados à sua idade e capacidade de discernimento (…)
Novamente: “alunos” por “deputados”.
“Artigo 43.º Responsabilidade dos pais ou encarregados de educação 1 — Aos pais ou encarregados de educação incumbe uma especial responsabilidade, inerente ao seu poder -dever de dirigirem a educação dos seus filhos e educandos no interesse destes e de promoverem ativamente o desenvolvimento físico, intelectual e cívico dos mesmos. 2 — Nos termos da responsabilidade referida no número anterior, deve cada um dos pais ou encarregados de educação, em especial: a). Acompanhar ativamente a vida escolar do seu educando; (…) h). Contribuir para a preservação da segurança e integridade física e psicológica de todos os que participam na vida da escola;”
Substitua “pais e encarregados de educação” por “eleitores”; “filhos e educandos” por “deputados”; “escola” por “Assembleia da República”.

E assim, com pouca despesa e com uma linguagem acessível a todos, aproveitando um texto elaborado pela própria Assembleia da República, seriam estabelecidos limites para tentar acabar com constantes vitupérios próprios de quem tem pouco vocabulário.

Post Scriptum – Eu trabalho todos os dias com o Estatuto do Aluno e da Ética Escolar e tenho uma proposta a fazer. Quando a Lei for objeto de alguma revisão, proponho o seguinte artigo: Qualquer aluno que não cumpra o determinado neste estatuto não poderá nunca exercer as funções de deputado.

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