A guerra do futebol

António Revez

Já sabemos. O futebol é uma guerra e muitas vezes sádica. O objectivo é derrotar o adversário e, preferencialmente, goleá-lo, lesionar três ou quatro jogadores oponentes, conseguir a expulsão de mais dois ou três, insultar os pais de outros tantos, discriminar as crenças religiosas e a cor da pele de mais uns quantos, pôr o treinador adversário a chorar, e fazer com que o árbitro saia do jogo a correr para debaixo de um camião. Esta luta impiedosa protagonizada pelos intérpretes da futebolada é efusivamente acompanhada por um fanático exército de dirigentes, funcionários, claques, sócios, adeptos, simpatizantes, comentadores desportivos afectos, jornalistas tendenciosos, e responsáveis institucionais facciosos. Todos eles unidos e sintonizados numa comunhão de obsessão clubística, raiva belicista, vingança, ressentimento, fúria demolidora, sede trocista, revolta, afirmação de superioridade, desprezo pelos adversários. Todos estes edificantes sentimentos são sublinhados até ao ênfase irracional, naquilo que se convencionou denominar, com candura, a paixão do futebol. E se esta efervescência emocional, e muitas vezes violenta, já é o que é quando as pessoas andam bem-dispostas, contentes, bem com a vida, imagine-se a amplificação que ganha num terramoto de depressão nacional aguda e crónica ao mesmo tempo, dilacerada em desemprego, sobreendividamento, défice, corrupção, insegurança, criminalidade, e mais o raio que parta esta crise que nos mina por dentro e arranca o pior de nós. E por transferência e sublimação, canalizamos muitas ilusões, expectativas, frustrações e angústias para o desgraçado do futebol, um excelente catalisador das misérias humanas, um fiel espelho das mesmas.
E o mais inquietante é que somos todos complacentes com o espectáculo de agressividade e violência que se assiste todos os fins-de-semana nos estádios deste país, e que é laboriosamente fomentado ao longo da semana em cada jornal desportivo, em cada rádio, em cada programa televisivo de comentário desportivo, em cada discurso de treinadores, em cada café, em cada reunião de adeptos, em cada combinação de claques. Precisamos de ambientes inflamados e explosivos, a sociedade agonia, a economia deprime-nos, a política enoja-nos, e o futebol oferece a irresistível adrenalina da confrontação, investe-nos de uma condição guerreira e, não raro, degradante. Alegremente degradante. E assim, especialmente em ocasiões de derbis, vamos aos estádios, apinhamo-nos nos cafés, convocamos indefectíveis para a nossa sala, e com pinturas de guerra no rosto, dentes serrados, e o coração a latejar nas palavras e urros, fazemos o nosso patético combate: matamos e esfolamos o árbitro, partimos pernas e braços a metade da equipa adversária, fuzilamos o treinador dos outros, e puxamos fogo às bancadas onde estão as bestas da outra cor. E os jogadores, cúmplices, replicam-nos ou induzem-nos: fingem, dramatizam, insultam, agridem, festejam cada golo com ofensas aos adversários. E os treinadores e dirigentes abrilhantam a violência com incentivos velados e culpabilizações estratégicas.
Saímos sempre vencedores, seja qual for o resultado, os galos no recinto da luta ficaram muito maltratados, sangrando, à vista, e o nosso sangue ferveu, com estúpida autenticidade. Agora ou mais umas cervejas, ou mais umas pedradas. Com paixão. Até ao próximo jogo.

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