Vemos, ouvimos e lemos

Vitor Encarnação

Es

Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”. Este verso é do poema Cantata da Paz escrito pela poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen.
Apesar de o poema ter sido escrito para uma situação específica, nomeadamente para ser lido, cantado e entoado numa vigília contra a guerra, na Capela do Rato, em Lisboa, o que é um facto é que esse pequeno excerto, claramente o mais forte e mais emblemático, pode ser aplicado a várias situações injustas, indignas e inaceitáveis da nossa vida.
A história de um país é a história dos homens e das mulheres que o habitam e o compõem nos mais variados âmbitos.
O conhecimento, a inteligência, a dignidade, a cultura, a ética, o espirito crítico e a noção do ridículo são os barómetros de uma sociedade mais capaz ou menos capaz. Só as mulheres e os homens dotados destes princípios são capazes de transformar e fazer evoluir as comunidades, as organizações, as instituições, o país.
Todos os outros, inaptos, grosseiros, indecentes, desavergonhados, só disseminam ódio, rigidez mental, imposição, negação, e por vezes, para nossa triste sina, galhofa e perplexidade.
Desde muito cedo que a humanidade sentiu que para evoluir é preciso aprender e incorporar tudo aquilo que nos afasta da selvajaria, da irracionalidade e da ignorância. Esses caminhos foram definidos através da filosofia, da cultura, do humanismo, das escolas e das universidades onde se processa o ensino com o objetivo de formar e desenvolver cada indivíduo nos seus aspetos cultural, social e cognitivo.
Há milhares de anos que andamos nisto, a fugir do básico e a almejar a evolução, a abandonar o execrável e a desejar o sublime, a desprezar a crueldade e a alcançar a sensibilidade, a acusar a falsidade e a promover a transparência.
É tão antiga esta história que me faz confusão como é que regredimos tanto. Como é possível que depois de tanto livro, tanto pensamento, tanto saber, tantas aulas, tanta lição de história, tanta arte, tanta gente brilhante, estejamos a ser confrontados com tanta imbecilidade.
A vulgarização dessa imbecilidade destrói a necessidade de aquisição de competências, aniquila o compromisso com o esforço, com o empenho, com o préstimo, com o merecimento.
A banalização dessa imbecilidade entra-me casa dentro e agride-me o cérebro, entra-me sala de aula dentro e mata trinta e sete anos de profissão, entra sociedade dentro e põe muita gente a rir, sendo certo que alguns riem para não chorarem.
Pressupõe-se que cada organização estrutura-se para ser mais capaz, escolhe os melhores, os mais aptos, regula-se para não se fragilizar, verifica quem são, como são, o que são, tem de ter a certeza que os seus assumem os mesmo princípios e perseguem as mesmas finalidades. Para tal, cada instituição só deve, sob pena de se desintegrar, incorporar aqueles que deram provas de sapiência e dignidade, só deve aceitar no seu seio aqueles que a fazem evoluir.
Obviamente que se o objetivo não for a evolução qualquer um serve.
Achava eu que apenas tem o excelso privilégio de integrar a Assembleia da República os que ao longo da sua vida foram escrutinados uma e outra vez, aqueles que passaram pelos filtros da competência, da honra, aqueles que superaram todos os desafios da sua escola, da sua comunidade, da sua região, do seu país. Achava eu que só lá chegavam os cidadãos diferenciados, os que se destacaram pelo seu contributo em prol do interesse público e por isso merecem representar-nos.
Santa ingenuidade de quem ainda só tem sessenta anos de idade e continua a acreditar na ética.
E agora vou preparar a minha mala para dar as aulas e ensinar a ver, a ouvir e a ler, coisas que para alguns não fazem falta nenhuma para conseguirem chegar a deputados.
E é essa falta de vergonha, de competência e de decência que não podemos ignorar.

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