Um sopro de Suão

Vítor Encarnação

Em 1968, numa manhã de geada parida por uma noite fria de Janeiro, João Mendes apanhou o comboio na Funcheira. Na bagagem levava uma muda de roupa, traços de melancolia e a morada de uns primos na Cova da Piedade.
Era tempo de abalar. Tinha chegado ao limite da sua capacidade de resignação. Por respeito aos pais e tendo em conta a relação destes com o lavrador que lhes dava o sustento e a caridadezinha no Natal e na Páscoa, havia desenvolvido uma fina capa de aceitação do estado das coisas. Era apenas um verniz tosco, uma pálida demão de instinto de sobrevivência. Mas à noite, com o fogo de azinho a alumiar-lhe olhos e alma, pensava. Pensava que a dignidade de um homem é seu último reduto. Perdido isso, perde-se tudo. Não é preciso ler livros para perceber que a existência de um ser humano não se faz de joelhos.
As searas de poucos. A cortiça de poucos. Os rebanhos de poucos. As propriedades de poucos. A miséria de quase todos. De sol a sol. O corpo sempre dobrado. A magra jorna. A sorte magana. Os sonhos esmagados. Pequenas tréguas na noite cansada. O suor escorrendo em vão, a pele queimada em vão, as gretas das mãos em vão – e tão pequenas as noites no Verão. E ele deitado na cama, remoendo, remoendo. Com uma foice no pensamento, rasgando ordens de capatazes, cortando injustiças, esventrando alarves.
Era hora de abalar com o coração cheio de geada. A mulher chorava à porta do monte. Nunca antes a sua companheira tinha chorado tão cedo. Na monda e na ceifa, quando os rins quebravam, aí sim. Mas de madrugada nos braços do seu homem, aí nunca.
A caminho da carrinha de bestas que o havia de levar durante duas léguas, João Mendes era um sobreiro arrancado pela raiz à luz da lua.
O filho dormia, quente e ingénuo. Talvez um dia o pai lhe falasse das lágrimas que caíam quando o monte todo lhe morreu atrás das costas.
A neblina que cobria a vereda era feita de uma pasta de silêncio só interrompido pelos cascos das éguas e pelo trote do coração.
O barulho das rodas partindo seixos, o barulho das rodas esmagando a submissão. João Mendes levava a boca fechada, pois tinha medo que a coragem lhe fugisse agarrada a uma palavra mais fraca. Esmoreceu, vacilou, mas não olhou para trás. Fechou os olhos para não sentir a vertigem do arrependimento de abandonar a sua essência transtagana. Acendeu o cigarro e o ânimo e olhou para o horizonte que morria logo ali nas crinas das cavalgaduras.
(Excerto do conto Suão)

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