Populares de Santa Comba Dão, e outros forasteiros concordantes, vociferam em acordes de convicção que Salazar é pai, é bom, é pátrio, é querido. O mesmo Salazar arrebata, destacado, o troféu televisivo e concurseiro (e há lá coisa mais descaradamente democrática?) do maior português de sempre. O mesmíssimo Salazar é abençoado e santificado, ou com relativismos historicistas, ou com revisionismos branqueadores, na voz categórica de opinadores psicossociológicos e literatos biógrafos que as várias televisões convocaram para derramar luz sobre o surpreendente (?) resultado do escrutínio televisivo. O carimbo do Salazar, ou a sua trágica nódoa sedutora, estampa-se nos rostos de jovens universitários que o reincarnam agora em tons “nacionais renovadores”, dispostos a conquistar associações de estudantes por esse país fora. Nacionais renovadores que salazarentamente ornamentam o Marquês de Pombal com cuspo xenófobo e subtilezas semânticas que troçam da lei. Nacionais renovadores e seus amigalhaços skins que já vieram em convívio degustativo a Beja, que também foi tela para rabiscos racistas.
<b>Três teses:
1.</b> Esta democracia adolescente disparou tiros para o ar a gritar utopias rápidas, inflacionou fervorosamente os males da ditadura e abandonou-a às portas do inferno para que se consumisse de vergonha. E depois despreocupou-se e abandalhou–se, como se a memória não precisasse de pedagogia; como se nós, tão sebastianicamente frágeis, não recuperássemos sem pudor as virtudes de um tempo que se envaideceu da ordem, da tranquilidade, da segurança, da seriedade, do patriotismo. Da ordem repressiva, da tranquilidade analfabeta, da segurança policial e pidesca, da seriedade caseira de técnicos de contas, do patriotismo mitológico e imperial. Os nossos pais fizeram a festa aos vinte anos, intensa e ruidosamente, e depois mal tiveram tempo para ressacar e arranjar um emprego público que os autorizasse a pertencer à classe média consumista, remediada e moderada. Iniciaram a sua decadência individualista, desculpada nos dias eufóricos do 25 de Abril e do 1º de Maio. Fizeram trinta, quarenta anos, e levaram os filhos à praia e ao futebol. Curtiram a vida e safaram-se, levaram os livros de Marx, Lenine e Mao para a cave, em caixotes de papelão, permeáveis ao bolor. Hoje, avós, repreendem as suásticas mal desenhadas dos netos. Mas não repreendem com muita certeza, afinal já nem têm idade para -se martirizarem. Chorar a culpa do seu esquecimento e desleixo faz, de certeza, mal ao coração. E não resolve nada. Muitos tentaram votar em todos menos em Salazar, é verdade. Também é verdade que muitos se enganaram no número de telefone. Inconscientemente?
<b>2. </b>Esta democracia forçada por militares insubordinados prometeu desde o primeiro dia vingar- -se do elitismo da coisa e jurou ser populista para provar que o escol de esclarecidos só precisa das eleições para se autolegitimar no poder, e que a estupidez do povo é tão trágica e tão cómica que transforma carrascos e vilões em heróis como que por capricho de desenlace telenovelesco. Se o povo tem memória de galinha certamente não saberá acertar contas com o destino da História nem com a história do seu destino, e, portanto, a vingança foi apenas anunciada como um poema e igualmente obliterada pelas vantagens lúdicas do presente: o poder do gozo e do “sei lá”. Salazar é voto de protesto, insatisfação, provocação. Pancada colectiva porque sim, porque isto está uma merda tão insuportável que votar Salazar soa a pôr uma bomba nesta palhaçada toda e também toda a gente sabe como o povo se dispõe a pôr bombas por todo o lado, lá desde o sofá da sala, entre um gole de cerveja, um macaco do nariz e uma asneirada reles sobre o cabrão do político filho da puta que é um chulo como todos eles são, aliás. Sem a televisão, esses homens sem memória filhos dos homens que brincaram ao 25 de Abril não levantariam o cu do sofá para votarem no Salazar (mesmo tendo sido um gajo com pulso firme e honesto), mas agora felizmente existem telemóveis e telefones fixos sem fios. E a democracia agradece. Ou não será que temos largos milhares de iconoclastas que conseguem parodiar cinicamente a nossa nacional condição terceiro mundista com o encanto da provocação? Se o D. Duarte Pio estivesse a concurso ganharia ele ou o guarda Abel.
<b>3. </b>Esta democracia a fingir se um dia fosse referendada televisivamente…Arriscava-se a ter de se levar a sério e a acordar desta letargia sonâmbula onde os fundamentos que estruturam estas coisas tão óbvias como o estarmos a especular livremente sobre o resultado de um concurso muito mal feito, parecem, de tão óbvios, dispensar culto, militância, e ensinamento. Tão óbvios que é difícil vê-los ameaçados. Até ao dia em que Salazar, ou as mil formas que possa assumir, ganhe o concurso das urnas.