Schengen

Vítor Encarnação

Aeroporto de Frankfurt-Hahn. Renânia-Palatinado. Alemanha.
O céu é chumbo congelado e o frio alimenta a neve que emoldura a pista onde o avião poisa como um pássaro. Foi por verem os pássaros que o Homem sonhou os aviões. De dentro desse sonho realizado saíram mulheres e homens, apressados, carregando sacos e puxando malas com rodas. De repente, o grupo que viajou dentro do pássaro desfez-se, dividiu-se em carros, em autocarros, em táxis, em nova porta de embarque e partiu a caminho das suas vidas. Talvez nunca mais se cruzem.
Procuro a empresa com um nome profundamente germânico que me há-de fornecer o carro. Lá a descubro ao fundo do corredor. Na parede, por detrás de uma jovem loura com olhos de um azul congelado, há dois símbolos diferentes. O que me interessa, aquele que risca a garganta quando se pronuncia, tem uma cadeira vazia à frente. Presumo que devo esperar que chegue alguém. Encosto-me ao balcão mesmo em frente do símbolo igual ao que levo na minha confirmação de reserva e espero. De vez em quando olho para a jovem à espera do conforto de um sorriso ou de uma palavra. Mas a jovem nada diz, a jovem domina a arte do silêncio e da indiferença. Algum tempo depois, incomodado com a demora, perguntei onde estava a pessoa para me atender, e ela, num inglês a riscar a garganta, disse-me de uma forma mais fria que o frio que alimenta a neve: Estou aqui! Não me vê aqui?!
Como podia eu, estrangeiro, embora a circular livremente pelo espaço europeu, mas estrangeiro, como podia eu não a ver?! Ausländer. Ela não o diz, mas eu ouço alguém a dizê-lo na fila de um supermercado em Estugarda no princípio dos anos oitenta.
Os documentos da reserva do carro estão escritos em português. No Portuguese, please. No Portuguese, only English. Digladiamo-nos em inglês e em alemão até que do confronto, contestadas taxas adicionais e impugnados seguros suplementares, num golpe final de cartão de débito, eu consigo a chave do carro. Ligo o rádio do carro com matrícula eslovaca e ouço uma estação do Luxemburgo. O dono do hotel era búlgaro, o empregado do restaurante italiano, turca a mulher da bomba de gasolina, paquistanês o vendedor do Bratwurst, alemão o homem que passeava o cão junto ao Château de Malbrouck em França. Malbrough s’en va-t-en guerre, Mironton, mironton, mirontaine, Malbrough s’en va-t-en guerre, Ne sait quand reviendra, Ne sait quand reviendra. Em Trier, junto à Porta Nigra e à Karl-Marx Haus, línguas estrangeiras tocam-se num beijo universal.
Em frente ao Musée Européen Schengen, paralelo à Rue Robert Goebbels, onde em catorze de Junho de mil novecentos e oitenta e cinco eu deixei de ser Ausländer, étranger, foreigner, o rio Mosel corre carregado de Inverno.
No triângulo das três fronteiras, ao mesmo tempo cabem nos meus olhos a Alemanha, o Luxemburgo e a França.
E ali onde o sonho europeu se realizou, também eu sonho que um dia numa praia do Algarve hei-de encontrar aqueles olhos azuis tão frios cheios de um azul quente.

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