Entre a Sala 600 do Palácio da Justiça de Nuremberga e o local onde se realizavam os comícios anuais do Partido Nazi distam apenas seis quilómetros.
Para além dos grandes eventos das organizações laborais, em 1927 e 1929 esta cidade da Baviera foi o local dos primeiros comícios do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães.
A partir de 1933, o Partido Nazi realizou anualmente os seus comícios em Nuremberga. Surgiu aqui um gigantesco local de culto, de onde se destaca o Zeppelinfeld, área de desfile do partido, concebido por Albert Speer. Estes grandes eventos nacionais, onde tinham lugar desfiles de massas, manobras militares e discursos inflamados, eram a forma de o regime nazi perseguir um objetivo social fundamental que se centrava na dedicação ao povo ariano, supostamente a linhagem mais pura dos seres humanos, através de um discurso populista suportado por um sentido racista e autoritário.
Entrar no Dokumentationszentrum Reichsparteitagsgelände – Centro de documentação dos terrenos dos comícios do Partido Nazi, numa tradução simples – é um murro no estômago.
Tudo nele nos abate e nos esmaga. Uma coisa é o que se ouve, infelizmente já filtrado pela passagem do tempo e pela ausência de memória, outra é vermos objetos, lermos com os nossos olhos ordens de serviço, ordens de deportação, ordens de fuzilamento, absolutamente vis e desumanas. Documentos banais, sobre coisas quotidianas, o que fazer em relação aos vizinhos de quem se desconfiava, os impressos para delação, a listagem da roupa e objetos que os judeus podiam levar consigo. Tudo tão trivial, mas tão metodicamente organizado.
Da mistura da construção de espaços físicos de dimensões colossais para engrandecimento do regime e da construção ideológica cada vez mais radical nasce o tempo mais dramático de todos os tempos.
Mas nada acontece de uma só vez, ninguém estala os dedos e as coisas acontecem, muito menos tudo aquilo que conduziu às horas mais negras da história.
É preciso ir criando a circunstância, moldando o caminho, a forma e o conteúdo, disseminando e repetindo ideias, ensinando nas escolas, ensinando na família, convencendo os amigos, influenciando os vizinhos, instruindo as comunidades, impondo programas, impondo o medo, castigando as opiniões diferentes, distribuindo propaganda, procurando culpados, acusando a diferença, culpando os que não são como nós, perseguindo todos os que não se enquadram numa ideia nacionalista, ou seja, a família, o povo e a pátria.
Neste tipo de discurso ideológico e político, a pátria nunca surge como uma forma de identidade cultural tolerante ou um espaço territorial aberto, a pátria é sempre definida como algo puro que se tem de preservar do que vem de fora, como se ela própria, no conforto do bem, da moral e dos bons costumes, nos passasse uma espécie de certificado que nos eleva a um nível superior.
O discurso de ódio é a base. É certo e sabido que o discurso efervescente provoca emoções e também se sabe que as emoções, se forem cirurgicamente ao encontro de receios, se avivarem frustrações, se descobrirem necessidades, se encontrarem bodes expiatórios, se forem fruto de um contágio de massas, anulam o raciocínio e, por consequência, o intelecto apenas consegue acusar, destruir, culpar, vociferar, guerrear. Tudo em nome dos nossos, sempre contra os outros.
A minha viagem entre o local onde se realizavam os comícios anuais do Partido Nazi, embrião do Holocausto, e o Palácio da Justiça de Nuremberga, onde se realizaram os julgamentos dos líderes do regime nazi, não demorou seis anos. A minha viagem foi rápida no tempo, mas dolorosa ao verificar, na necessária comparação com o tempo presente, que o ser humano não aprende nada, ou melhor, os líderes dos povos, os disseminadores das ideologias extremistas, não aprendem nada.
A ausência de humanismo fere de morte a nossa existência.
Pela primeira vez na história, um tribunal internacional foi autorizado a responsabilizar pessoalmente os principais representantes de um Estado por crimes ao abrigo do direito internacional e o julgamento contra os grandes criminosos de guerra seria realizado em Nuremberga. Simbolicamente, não poderia ser em mais nenhum outro sítio.
Entrar no Memorium Nürnberger Prozesse no Palácio da Justiça de Nuremberga é outro murro no estômago. Tudo nele nos abate e nos esmaga. A exposição permanente impressiona pelas imagens, pelos dados, mas impressiona muito mais pelo som. Poder ouvir a voz daqueles que perpetraram crimes tão hediondos é aterrador, principalmente a voz daqueles que mesmo durante o julgamento e a acusação defenderam Hitler e os seus ideais até ao fim.
Mas o que nos afeta mais é a Sala 600, a sala de audiências dos julgamentos de Nuremberga. Aquele espaço condensa a constante luta entre as liberdades e as ditaduras, entre a justiça e a injustiça, entre a dignidade e o horror. Estar presente num espaço onde estiveram os maiores criminosos da história da humanidade deixa-nos frágeis, sensíveis, chocados. Já estive em muitos sítios que me emocionaram, mas este foi dos mais fortes.
Num sítio destes impera o silêncio. Vinte pessoas de várias nacionalidades olhavam e pensavam em tudo o que aconteceu para que, em 20 de novembro de 1945, se tivesse chegado ali.
Em frente a tanto horror vi muitos alemães com filhos e com netos. E explicavam-lhes tudo. Os alemães, penso que a grande maioria, têm sabido fazer o caminho da sua própria penitência e absolvição.
No fim da Década de 1970, adolescente e filho de emigrantes na Alemanha, perguntei a uma senhora idosa como foi possível que o nazismo se tivesse imposto. Lembro-me bem da sua resposta:
– No início ninguém desconfiou, depois já era demasiado tarde.
Festival Beja Jovem realiza-se até domingo
Concertos com artistas e DJ’s, como Pete Tha Zouk, Joana Perez e Overule, e atividades desportivas são propostas do Festival da Juventude – Beja Jovem