Quem disse crise?

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Sandra Serra

Ainda não vi. Recuso-me a ver. Recuso-me a acreditar. Não me safo dos comentários das pessoas, mas não consigo perceber qualquer explicação que me dêem sobre o facto que as levas a assistir ao degradante espectáculo de prostituição que é o programa “Momento da Verdade”. Qual julgamento em praça pública da Idade Média, instalada numa cadeira giratória e à mercê de uma máquina que mede o batimento cardíaco, frente-a-frente com a família e perante uma plateia de desconhecidos e de uma carrasca loira, uma pessoa, que para a maioria de nós é um ilustre desconhecido, vende por dinheiro a sua privacidade a um nível tão profundo como nenhum programa de televisão tinha feito até hoje.
A minha mulher só saberá um dia que a traí se me pagarem para ser verdadeiro com a companheira que escolhi para partilhar a vida. O meu filho nunca saberá que realmente não o amo, a não ser, claro, se houver dinheiro em troca. As pessoas passaram a ser pagas para serem verdadeiras, leais, amigas. Chegámos a isto? Recuso-me a acreditar. Gostaria de elevar o paradigma do optimismo em todos os momentos. Mas às vezes é difícil. É muito complicado mesmo. Talvez seja ingenuidade acreditar profundamente que o Homem é antropologicamente bom. Há quem insista em fazer acreditar-me que não. Que as pessoas são, por defeito, más, falsas, egoístas, putas. Talvez tenham razão.
Quem disse crise? A crise, meus senhores, é muito mais profunda que o crash financeiro. Não sei se impelidos por um profundo medo da vida, mas sinto que qualquer dia seremos canibais. Porque, e realmente, só não nos comemos uns aos outros no sentido mastigável da palavra (e claro que também não me estou a referir ao sentido sexual da palavra). Digo comemos mesmo. O egoísmo impera. O dinheiro dita. Vendemos a alma em directo – Money makes the world go round.
Sejamos realistas! O Homem sempre mentiu, sempre escondeu, sempre foi infiel. Mas alguma vez o fez em directo para milhares de pessoas, sem medo das consequências, disposto a magoar, a revelar os seus sentimentos mais intímos em troca de tuta e meia? Quanto vale a verdade? Quinhentos, dois mil, vinte mil euros?
A matriz social está descontrolada, descontroladíssima meus senhores. Discute-se em Parlamento se pessoas do mesmo sexo podem ou não casar. Mas quem somos nós, quem são os políticos de um país para definir o amor e para julgar o Homem na sua vontade de contrair laços com a pessoa que ama. Pessoa, meus senhores. Toda a gente sabe que há homens que gostam de homens e mulheres que gostam de mulheres. E depois? O que é que eu tenho a ver com isso, o que é que isso contribui para a minha felicidade ou infelicidade? Pessoalmente acho que este é um assunto que nem merece discussão. Todos têm o direito a serem felizes com a pessoa que escolheram. E se fazem questão em casar-se, pois que se casem. É isso que está estabelecido na Constituição, infelizmente não está estabelecido no nosso coração medíocre e preconceituoso.
“Onde isto chegou. Já toda a gente entra na igreja”, dizia outro dia ofendidíssima a mulher pseudo bem formada e de boas famílias. Pois é minha senhora, onde isto já chegou.
Preocupamo-nos tanto com o que está bem, com o que é socialmente correcto, mas cada vez menos com o que é humanamente justo.
O dinheiro escasseia, mas os valores humanos, meus senhores, esses escasseiam muito mais do que as notas de cinquenta euros na minha carteira.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima