Caro sr. Gonçalo Pereira, director da “National Geographic Portuguesa”:
Estas últimas semanas não têm sido positivas para a Câmara Municipal de Beja. O cerco começa a apertar. As dívidas são mais que muitas e a resposta é sempre a mesma: problemas de tesouraria.
Ora problemas de tesouraria temos todos, até eu, que não tenho tesouraria (no meu caso, ao usar esta palavra, estaríamos a falar de um local onde eu guardaria tesouras, se houvesse necessidade de ter mais que uma, o que não se aplica).
Cada um trata das suas dificuldades de tesouraria como entende: interruptores desligados, duches curtos, sopa às refeições, menos saídas, menos cafés, menos, menos… – tudo na tentativa de fazer o que o senhor primeiro-ministro aconselha: irmos de férias quando chegar a altura.
A verdade é que mesmo antes desta crise nos ter entrado pelos bolsos adentro, o dinheiro já era pouco, pelo menos no que à cultura diz respeito, que, usando uma expressão velha e estafada (quase tanto quanto eu), é sempre “o parente pobre”.
Temos vindo a assistir, mudos e quedos, a uma substituição progressiva da cultura pelo que é puro entretenimento. Já se sabe que os romanos não eram tolos nenhuns e a história do “pão e circo” não é tão superficial quanto isso. Não que tenha alguma coisa contra o entretenimento, eu até gosto de me entreter, mas já o Zé Mário Branco nos avisava em 79: “Entretém-te filho. Entretém-te”. – Por esta e outras razões, a gente devia-lhe ter prestado mais atenção.
O entretenimento, que não alimenta a alma – como alguém dizia –, apenas nos distrai e nos dá a ideia falsa de uma dinâmica cultural, de uma cidade viva, ganha terreno. Naturalmente, é mais fácil. Temos assim milhares de euros gastos em actividades efémeras, que mais não deixam que as canas dos foguetes no chão e uma ressaca no dia seguinte. E por falar em ressaca, as actividades ligadas a áreas normalmente chamadas culturais, como o vinho, levanta-me questões, nomeadamente: porque raio está o orçamento da cultura a alimentar festas vitivinícolas?
Fiquei maravilhada com a sua carta por nos mostrar o que acabo de referir de forma tão factual e objectiva. O problema da Câmara Municipal de Beja não se prende com a tesouraria, prende-se com uma troca de prioridades que nada tem de ingénuo. O dinheiro existe, existiu e foi gasto. Em foguetes. Ao invés de termos uma política cultural, temos uma política de entretenimento. Entretanto, o museu corre o risco de fechar, o Conservatório também, há dezenas de pessoas com ordenados sistematicamente em atraso, prémios atribuidos pela Câmara de Beja não são pagos, compromissos que a Câmara assume com os agentes culturais da cidade não são cumpridos, os jovens criadores saem da cidade, os músicos não gravam, os desportistas não desportam… E o senhor vereador da cultura pede desculpa e diz que não tem dinheiro, no entanto: “Se os artistas não quiserem colaborar nestas condições, digam e nós deixamos de contar convosco.*” Contar?! Quem deixou de contar fomos nós, que não temos nada para contar a não ser os meses de atraso do ordenado que não chega!
Sei que não me conhece e peço desculpa por tomar esta liberdade de lhe falar, mas precisava de chamar a atenção para as suas palavras, porque eu perco-me em considerações e a objectividade não é o meu forte. Obrigada por intervir por Beja, pelo seu museu e pela cultura da cidade.
<i>*no jornal “Público” de 6 de Março</i>