Outono

Vitor Encarnação

Escritor

Por causa de um pacto ancestral com a curvatura da terra, o sol entrega-se mais cedo ao horizonte e nele repousa, deita-se atrás da noite, para que a lua possa viver mais um pouco.
É este o acordo selado ao crepúsculo. É esta a semente do outono.
E as noites fazem-se gordas, mais fundas. Prenhes de escuridão, deitam do ventre manhãs de geadas que depositam à nossa porta.
O vento que vem agarrado ao ar traz um cheiro a frio e sabe-se lá se o sopro que se ouve na rua e nas gretas das janelas não será o lamento do verão que fechamos nas gavetas das camisolas de manga curta.
E as formigas de asa são carteiros alados pousando no chão do outono, trazendo a certeza de chuva. (De onde vêm estas formigas etéreas? Quem foi que pôs no céu estes bichos de terra e carreiros?)
Lá fora, por cima das terras lavradas, o firmamento forra-se de cinzento graúdo. Chama a si as nuvens e junta-as num teto de bronze e algodão que rouba a sombra às pessoas e às coisas todas. E quando as nuvens se tocam muito ou tudo, quando se excitam de céu e altura, abrem-se em água, às vezes pouca, às vezes toda. E cá em baixo, a terra que é homem e mulher ao mesmo tempo, de tão contente que está recebe a água nova e leva-a para o seu leito, por cada poro, por cada rego. Inundando-se.
E a chuva como que bebe o pó. Torna-o líquido, incapaz de voar. Prende-o à terra se a chuva for pouca, solta-o na corrente de uma ribeira que finalmente se veste de água se for toda.
As folhas caídas são um vestido amarrotado que o vento, com as suas mãos inquietas e descobridoras, tira do corpo rijo das árvores em dias e noites de perdição. E nesse manto de folhas secas, debaixo dos meus pés, crepita, estala a minha infância toda. Como se um vento ao contrário me aquecesse a vida. E assim eu tivesse de novo na boca, nos olhos e nas mãos, os primeiros sabores de tudo: das castanhas assadas no cansaço do fogo – a cinza é o cansaço do fogo –, da planície que arrefece, da samarra que me envolve como uma ternura.
E cada folha é também um bocado de tempo que se despegou para sempre. Até ser pó como eu serei quando todos os outonos se acabarem.
Há um castanho imenso entornado por sobre o mundo.
É a cor do silêncio, acho eu.
E as formigas, as normais, aquelas que nunca provaram o céu, cumprem a sua fatalidade. De pés bem assentes na terra. Algumas delas quem lhes dera ter asas!
E há uma noite em que o tempo entontece porque lhe repetem uma hora. Mas os ponteiros do relógio não são os braços nem o coração do destino. O tempo sabe que não pode nunca ser o que já foi. O que os olhos disseram está dito. Pronto, acabou-se.
O outono faz-me cair para dentro. Empurra-me para mim.
Talvez me leve para o lado da suave mágoa. Da névoa.
Dos maiores ventos.
O outono despe-me mais todas as palavras que digo.
Nada faço para me opor.
Como uma árvore.

Facebook
Twitter
LinkedIn
Em Destaque

Últimas Notícias

Role para cima