Necas – Um Ladrão Improvável

Sexta-feira, 17 Dezembro, 2021

Napoleão Mira

Escritor

Naquela manhã de frio glaciar, pôr o nariz fora do amontoado de cobertores que lhe imobilizavam o corpo já era obra só acessível a corajosos.

Na verdade, já tinha feito algumas tentativas por retirar da cama o corpo anestesiado pelo peso dos cobertores e pelo sufocante calor gerado pelo rolo atoucinhado que era o corpo de sua Gertrudes, mas de cada vez que o tentava, o choque de temperaturas era tal que Necas logo voltava para o reconfortante calor do leito conjugal.

O padeiro das sete e meia foi o primeiro a acordá-lo com a sua irritante corneta. Acordou-o a ele e a todos os habitantes daquela rua tão estreita, tão estreita que as vizinhas para trocarem raminhos de salsa, só tinham que estender as mãos pelos postigos.

Necas foi-se por ali ficando, ouvindo crescer os sons, ruídos e vozes que lentamente começavam a invadir o seu território familiar.

Antes da primeira corneta do primeiro padeiro, já um primeiro galo havia anunciado a chegada de um novo primeiro dia do resto da sua vida. A chinfrineira da motorizada do Chico da Horta também já se fizera sentir lá ao fim da rua. Vizinha Aldina já tinha posto a telefonia em altos berros e Necas foi-se acomodando no corpulento canastro de Gertrudes que lhe respondia com cotoveladas e, quando a coisa ganhava proporções a roçar o irreversível, resolvia o assunto com uns coices certeiros que quase atiravam Necas borda fora, perdendo este desde logo qualquer intenção que lhe povoasse os matinais pensamentos.

Num desses repentismos a que Gertrudes o votava, lembrou-se que o calendário há muito que estava na última folha, o que queria dizer que o natal se aproximava a passos largos e que ainda não tinha pensado na maneira de se desenvencilhar dos presentes que havia prometido aos três pirralhos lá de casa.

Necas vivia de esquemas, sendo que o principal consistia em receber o fundo de desemprego a que não tinha direito e ao mesmo tempo fazia uns ganchos do que aparecesse: servente de pedreiro, electricista, ajudante de motorista, moço de fretes, ou mesmo juntar-se ocasionalmente ao gang do Perigoso, que há muito o desafiava para membro efectivo da quadrilha, faziam parte da sua panóplia de soluções desenrascantes.

Vivia no fio da navalha, ou no rol do merceeiro, se preferirem, para suavizar um pouco a coisa. Não era um criminoso por assim dizer. No máximo duas a três vezes por ano lá se juntava à trupe local de malfeitores para uns trabalhinhos que visse não representarem um risco demasiado elevado, até porque também como todos nós tinha um buraquinho onde as costas terminam e o império da “cagufa” começa.

No caso dele era um buracão, até porque sabia e sentia que só recorria a estas artimanhas salteadoras quando o Arménio do talho, seu senhorio, munido de cutelo ensanguentado, o ameaçava com ordem de despejo com direito a carga de porrada e tudo, pelos meses de renda atrasados.

Nessa altura, não lhe restava alternativa senão calçar as luvas, colocar o passa- montanhas e pela calada da noite lá ia com a quadrilha do Perigoso aliviar os incautos que lhe surgissem no caminho, ficando sempre na retaguarda, até porque era a melhor posição para dar de frosques caso a coisa não corresse de feição.

Em boa verdade, odiava esta actividade; não nascera para marginal, adorava os filhos e apesar de Gertrudes se ter fisicamente deformado, continuava a nutrir por ela carinho e respeito. Afinal, era a mãe dos seus três filhos e namorada desde os tempos de escola.

Foi pensando neles que Necas se ergueu da cama naquela manhã gelada de vinte e quatro de Dezembro.

Pensou, repensou, coçou o couro cabeludo na esperança de que tal gesto o ajudasse a congeminar uma ideia onde descortinar algum do vil metal.

Ninguém o chamava para qualquer biscate, a conta da mercearia já há muito ultrapassava os avisos de cortar fiado do António do minimercado, o corpulento Arménio talhante já lhe rondara a porta nos últimos meses, tantos como os que levava de atraso na maldita renda daquele barraco a que Arménio insistia em chamar casa. Tudo o que fosse possível empenhar, já há muito que estava no prego e com as cautelas caducadas. Até o Perigoso e sus muchachos estavam em período sabático, visto que a “bófia” não largava o bairro e tinha-os debaixo de olho, desde que o Ortigas fora dentro e, para salvar o coiro, resolvera chibar-se, revelando golpes, autores e sobretudo entalando o Perigoso até ao tutano.

O Natal era ali ao cair da noite e nem ausentes, quanto mais presentes.

Desceu a rua íngreme que desembocava na praça central do bairro, e enquanto se tentava hipnotizar na quadrícula que as pedras desenhavam na calçada, teve uma ideia vertiginosa, uma espécie de epifania.

Entrou numa das lojas de chineses que ultimamente haviam invadido o bairro e, com os últimos trocos, comprou um fato de pai natal que incluía para além do barrete, calças e casaco, um cinto preto e umas barbas brancas enormes que quando colocadas deixavam Necas completamente irreconhecível.

Entrou na tasca do Cardoso e quando saiu da casa de banho onde se refugiara para a sua transfiguração natalícia, ninguém o reconheceu, apenas algumas larachas dos bêbados habituais pedindo ao homem vestido de vermelho que lhes desse de presente uma garrafinha de tintol mesmo que fosse rasca.

Num «Ho! Ho! Ho!» mal ensaiado, despediu-se acenando e certificando-se de que ninguém o havia reconhecido.

Na sua mente, agora, só bailava um pensamento: dirigir-se ao armazém dos brinquedos que pressentia estar em grande azáfama – como seria de esperar numa noite como a que se avizinhava – e sem qualquer ponta de hesitação e um pouco de sorte cumprir com a promessa que havia feito aos seus três rebentos.

Decidido a não falhar o golpe, foi rememorizando os pedidos que lhe haviam sido feitos: para o Carlitos uma PSP; Vanessa, a do meio, havia-lhe sugerido uma casa da Barbie ou em alternativa uma boneca que dava num anúncio matinal da TV, que falava e a tratava por mamã sempre que lhe pegava; Becas, o mais pequeno, deixou ao seu critério o mágico presente num encolher de ombros que deixou Necas de olhos baços.

Percorrendo apressado as ruas da cidade que conhecia de cor e salteado, era aqui e ali interpelado por jovens casais que lhe pediam para sentar por momentos os filhos no colo e, naquele instante de magia, ingenuidade, e quem sabe, verdade infantil, cristalizar na câmara do telemóvel aquele momento para mais tarde recordar.

Quando dobrou a esquina e viu as luzes do armazém, ainda se reteve por instantes, mas depois pensou na figura que faria ao chegar a casa de mãos a abanar.

Num acesso de coragem único, irrompeu pela loja dentro e com o dedo no bolso fingindo ter o cano duma arma gritou: «ISTO É UM ASSALTO, TODOS NO CHÃO…» As três funcionárias presentes cumpriram a ordem sem pestanejar e Necas percorreu com os olhos as prateleiras na ânsia de encontrar os requisitos de que vinha incumbido.

Num ápice reconheceu dois dos presentes da sua lista mental; agarrou ainda numa caixa de peças para montar da LEGO e decidiu que aquele seria o presente para o Becas.

Ao sair do armazém ouviu atrás de si o grito: «AGARRA QUE É LADRÃO!»

Necas, sentiu um impulso imediato que o impelia correr a uma velocidade inimaginável. Cerrou os dentes e depois de bater com os calcanhares no rabo por alguns minutos que lhe pareceram uma eternidade, desembocou na avenida principal da sua cidade que, por magia, estava pejada de pais natais iguaizinhos a si numa imensa parada onde se internou sem deixar rasto aos frustrados perseguidores. Era, apenas e tão só, mais uma dessas manias portuguesas que consiste em bater recordes do Guinness. Desta vez era o maior número de pais natal em dia de consoada!

Ainda viu os gargalos dos seguranças que haviam seguido no seu encalço na expectativa de o apanharem, mas Necas tinha-se diluído naquela amálgama de pais natais vestidos em loja de chinês.

Nem mesmo das vezes que tinha alinhado nos golpes do Perigoso tinha sido sujeito a tamanha aflição, só mesmo aquela nervoseira permanente de quem não nasceu para salteador.

Necas estava exultante, e apesar da maroteira que havia lavado a cabo, estava invadido do espírito natalício e não se cansava de abraçar os outros pais e mães natal e desejar-lhes, bem como à família, um santo e feliz natal como fazia questão de frisar.

Já tinha os brinquedos para os putos, faltava-lhe as comezainas para celebrar o nascimento do menino. Ao passar numa loja de mercearias finas, reparou num cesto de verga envolto numa película amarela com um laço resplandecente contendo tudo o que era necessário para uma consoada farta. Bacalhau, batatas, couves, vinhos de mesa e do Porto, whisky, licores variados, bolachas, chocolates, frutas frescas e secas eram parte do rico cardápio daquele cabaz.

Aproveitando a confusão e o disfarce que tinha, ao passar junto do desejado cesto enfiou o braço pela asa do cesto, e ala que se faz tarde.

Remeteu-se para o centro da confusão de modo a não ser descoberto caso o merceeiro desse por falta da cabaz e lá foi rua acima exultando de alegria, beijando mesmo alguns dos transeuntes que haviam parado para ver passar aquele mar de pais e mães natais.

Estava verdadeiramente feliz. Tinha consigo os presentes da miudagem, tinha conseguido ainda “fanar” um belo cabaz de natal que estava mesmo ali à mão de semear e assim pôde oferecer aos seus uma noite bem diferente daquela que lhes estava destinada.

Saiu da parada carregadinho que nem um verdadeiro Pai Natal e voltou a parar na tasca do Cardoso para um momento de celebração mais que merecido.

Trocou com o taberneiro uma lata de pêssego em calda por um jarrinho de vinho, bebeu e deu de beber a três almas que ali estavam que sem terem eira nem beira também eram filhos de um Deus menor, mas mesmo assim um Deus com direito a pedestal e a letra grande no início do seu nome.

Quando a noite se fez realmente noite, regressou ao bairro e, pé ante pé, abeirou-se de sua casa. Espreitou pela janela da cozinha e viu Gertrudes a brincar com os seus rebentos.

Ouviu o mais pequeno perguntar por si, enquanto a mãe se desculpava com o muito trabalho em noite tão especial, mas que não devia tardar.

Conferiu a roupa que lhe proporcionava uma nova personalidade, ajeitou a barba para não ser reconhecido e dissimulou a voz para que o seu disfarce surtisse efeito.

Bateu com força assustadora na porta. Lá de dentro mãe Gertrudes (também ela assustada!) perguntou quem era. Necas respondeu com voz cavernosa de velho da Lapónia, ao mesmo tempo que barafustava pelo estado em que encontrara a chaminé que não o deixava completar o trabalho de forma habitual, tendo de entrar pela porta – o que era uma desconsideração para quem há tantos anos descia pelas chaminés de todas as casas de todas as cidades, vilas e aldeias deste mundo.

Gertrudes abriu lentamente a porta, mas não reconheceu Necas naquela vestimenta. Entrou em casa sem que os miúdos lhe largassem a labita especialmente o pequeno Becas, que numa gritaria rejubilante pediam ao pai natal os presentes solicitados.

Depois de posta ordem na casa começou a distribuição dos brinquedos.

– Quem é o Carlitos? – vociferou o velho das barbas. – Sou eu! Respondeu Carlos com o dedito espetado e um sorriso que ia de orelha a orelha.

Toma, onde está a Vanessa? Voltou a perguntar o figurão vestido de vermelho.

– Aqui, respondeu a pequenota.

Toma o teu presente. Também devia de estar aqui outro menino, o João Alberto, mais conhecido por Becas. Onde é que ele está?

Vindo de debaixo das saias da mãe surge a mascote da família que se agarra à perna do pai natal, requerendo uma atenção que Necas fingia não lhe dar.

-Toma este presente especial que o teu pai recomendou que te oferecesse.

Por fim perguntou pelo dono da casa. Que não estava – respondeu em uníssono a criançada – mas que não devia de tardar.

Trago aqui este cabaz para ele e para o resto da família, como ele não está entrego-o aqui à vossa mãe…e agora vou-me andando que ainda há muito trabalho por fazer.

As crianças despediram-se daquele pai natal que tinha um não sei quê de familiar mas que eles não conseguiam vislumbrar.

Caminhou então em direcção à escuridão e quando sentiu que não estava a ser observado desfez-se do disfarce de velho barbudo e recordou as emoções daquele dia cheio de peripécias. Por uma vez tinha cumprido para com os seus, não os havia desiludido e por isso sentia-se bem, sentia-se invadido do espírito da quadra, o que também premeditava uma viragem positiva na sua maneira de abordar a vida.

Ao dobrar a esquina que o havia de novo conduzir à tasca do Cardoso, sentiu uma mão pesada e firme no seu ombro. Na sua frente estavam dois homens que, empunhando os respectivos crachás, se identificavam como agentes da Polícia Judiciária, que de imediato lhe deram voz de prisão pelo assalto ao armazém de brinquedos.

Necas nem queria acreditar no que lhe estava a acontecer. Depois do susto da sua detenção e de ter negado os factos foi confrontado com a seguinte afirmação:

O telemóvel 965 743 188 é não é seu?

Não o deixou em cima do balcão do armazém?

Quando fomos chamados ao local, telefonou uma tal de Gertrudes que disse ser sua mulher e que nos forneceu o seu nome e morada. A partir daí foi só esperar que aparecesse… agora vai bater com o canastro na prisão à espera do destino que o juiz ditar para o seu caso.

– Deixe lá também estamos de serviço e precisávamos de companhia para passar o natal.

– Agora é melhor que nos apressemos que o bacalhau com couves não pode esperar..

-Anda daí e pouco barulho….

– Ó Monteiro liga lá para o serviço e diz ao Pereira para pôr mais uma posta no tacho aqui para o nosso pai natal da treta… pediu o polícia que lhe algemava as mãos, mas que havia de algum modo simpatizado com a causa deste desastrado ladrão ocasional.

Necas pediu ao simpático agente policial que o deixasse utilizar o telemóvel uma última vez.

Ligou para casa. Atendeu a Vanessa, a quem ordenou que fossem comendo, porque tinha arranjado um biscate na distribuição de brinquedos e a coisa estava atrasada porque o pai natal se tinha demorado muito numa determinada casa lá do bairro e por isso toda a entrega estava atrasada.

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