Mãe

Quinta-feira, 17 Setembro, 2020

Ana Ademar

actriz

Porque o dia da mãe está aí – e mãe há só uma – pensei escrever um texto bonito, sentido, cheio de belas palavras, que provocasse uma ou outra lágrima e um sorriso a quem o lesse. Até inventariei algumas expressões que, não sendo originais, funcionam sempre, se colocadas de uma forma mais original que a costumeira “foste tu que me deste a vida” e blá, blá…
Ora por mais voltas que dê à cabeça, a palavra “mãe” remete-me uma e outra vez para o José Mário Branco e para aquele momento do FMI em que ele chora, grita, arrepia e faz doer por dentro. Pensei que não seria razoável da minha parte (e provavelmente iria dar buraco) tentar escrever um texto sobre arco-íris, ponéis cor-de-rosa e outras coisas lindas, tendo como fundo sonoro: “oh mãe, oh mãe…”
A verdade mãe, é que sendo este o teu dia, e o das outras mães (as boas) – se não fosse este seria outro, porque isto dos dias especiais é, como o Natal, quando uma pessoa quiser – devia escrever sobre isso, porque quando pensamos em mães, pensamos em coisas boas e quentes como o teu colo ou bolos a sair do forno. Mas estes não têm sido tempos quentes. Não estou quentinha nem concentrada em coisas boas. Não posso.
Ainda estamos perto do 25 de Abril e do 1º de Maio e olho à volta e já não percebo ou não quero sequer perceber o que se está a passar. As coisas estão difíceis, tu sabes. Bom, nunca foram fáceis, mas isso era para mim, que vivo com a profissão que escolhi. Mas agora, mãe, parece que é geral, não é? Às dificuldades óbvias da sobrevivência de cada um, juntam-se estes acontecimentos monstruosos, chocantes que assistimos na televisão (quando ela mostra, porque eu sei mãe, que há coisas que ela não mostra) ou na internet. Há miúdos, cada vez mais, a desistirem da escola porque a família não pode suportar os custos; há miúdos, ainda mais miúdos, que comem uma vez por dia na escola, porque em casa se conseguem ver na perfeição as paredes da dispensa e do frigorífico. Há jornalistas que, ao fazerem o seu trabalho, lhes é explicado a cacetete o que é uma manifestação a sério. E viste aquelas senhoras no Chiado que quiseram pintar um cartaz cor-de-rosa, mas a polícia não deixou? Porque será que as empregadas domésticas não podem pintar cartazes? E no Bairro da Fontinha, como é que se explica aquilo? Tu sabes? É que eu não sei, mas diz o bom senso que a esta altura do campeonato, que é a minha vida, já não seria preciso pedir-te explicações sobre as coisas do mundo. Não acredites, que eu também não.
E agora até ao 1º de Maio querem tirar o sentido? Vendo bem até tem lógica, a lei dos três oitos é completamente esquecida num código de trabalho esquisito e suspeito… o objetivo é este, mãe: aos poucos, querem-nos fazer acreditar que o maior dos absurdos faz todo o sentido… e parece que estão a conseguir.
Olha, a verdade é que todos os dias há notícias de milhões gastos em bancos na falência, ordenados de milhões, mais milhões para reformas e não há ninguém que páre isto, quando há miúdos pequenos que só têm uma refeição quente por dia; quando há velhos que se matam porque se fartaram da miséria; quando todos os dias há famílias a perder a casa; quando, cereja podre sobre este bolo de lama que nos dão a comer, até para ficarmos doentes temos de pensar se há dinheiro para esse luxo…
Mãe, achas que se olharmos bem uns para os outros, lá bem no fundo dos olhos, como dizia outro poeta meu amigo, ganhamos mais força? Talvez assim a indignação abandone as fronteiras de cada um e origine uma linha condutora que a todos una.
Será já claro para ti que o meu estado espírito não é o indicado para dias festivos e felizes como o dia da mãe, mas se não te dissesse nada pesar-me-ia a consciência.
Veio-me agora à cabeça um poema do Manuel Alegre, “Rosas Vermelhas”. Também ele fala da mãe. Não é um poema bem disposto ou feliz, eu sei. É triste, desolado, dolorido, mas há naquelas linhas qualquer coisa quente, um pouco de conforto numas pétalas de rosa, como o que se encontra no colo da mãe.

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