Espinha direita

Quinta-feira, 31 Março, 2016

Vítor Encarnação

Um bom jornal é como um homem. Tem de ter a espinha direita e nunca se deixa vergar.
Um bom jornal é um animal vertebrado. As palavras são os ossos e as frases são o esqueleto que o mantém, sempre, sempre de pé.
Um bom jornal tem de ter memória. Mais, ele é a própria memória que fica ali como prova. É por assim dizer, a marca do tempo, a data das coisas, a interpretação de um momento, a impressão digital do jornalista ou do cronista.
Um bom jornal é o próprio devir. É consciência, é bússola, é farol, é mapa, é polígrafo, é palco, é luz. Deve, essencialmente, iluminar todos os lugares que os homens invertebrados querem, a todo custo, manter na penumbra.
Não pode ser a voz de qualquer dono, a caixa de ressonância de qualquer lenga-lenga, o eco de qualquer interesse, o tentáculo de qualquer polvo.
Um bom jornal é a alma da liberdade. Quando o abrimos, temos de abrir horizontes, brechas, alas, caminhos, gargantas. Se assim não for, não vale a pena. Um jornal cómodo, acomodado, acobardado é uma lesma pintada de letras.
Um bom jornal não pode ser o charco. Um bom jornal tem de ser a pedra. Não pode ser silêncio. Tem de ser interrogação, exclamação, grito. Não pode ser um papel. Tem de desempenhar um papel.
Cada página é chão para semear palavras. Estas, seguramente, não as leva o vento. Estas ficam ali agarradas às páginas para serem lidas. Não interessa se são poesia, provocação, incómodo, elogio. Não interessa se são técnicas, mundanas, transcendentes, vermelhas, cor-de-rosa ou cor-de-laranja. O que interessa é que são pensamento, dúvida, certeza, sonho. Fazem-nos crescer por dentro e ao aproveitarmos umas e ao deitarmos outras fora, sabemos por onde vamos e, por exclusão de partes, por onde, definitivamente, não queremos ir.
Quem escreve num jornal tem de ser um homem livre. Não pode estar sujeito a grilhetas, trelas, encomendas partidárias ou determinações religiosas. Quem escreve num jornal tem de ser coerente. Não pode dar uma no cravo e outra na ferradura. Quem escreve num jornal tem de ser transparente. A sua escrita não deve nunca esconder a realidade. Quem escreve num jornal não pode nunca ter medo das suas próprias palavras. Um homem com medo das suas próprias palavras, normalmente morre afogado em silêncio e indiferença.
Um bom jornal não é papel higiénico. Nem de lustre, nem de embrulho.
Não é um balão cheio de éter, um fogo-fátuo, nem um espelho onde se reflectem imagens narcisistas. Também não é cata-vento. Não abre as pernas. Não se põe de joelhos. Não se deita em qualquer cama. Não põe o rabo entre as pernas. Não tem medo do papão.
Um bom jornal olha sempre de frente. Olhos nos olhos.
E diz sempre o que pensa.

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