A voz de Fernando Pessoa

Quinta-feira, 3 Maio, 2018

Napoleão Mira

empresário

Aqui há umas três semanas conheci Manuel Moya, um reconhecido escritor e poeta andaluz que, para além dos atributos e predicados que fizeram dele uma referência em Espanha, também é tradutor oficial da obra de Fernando Pessoa.
É claro que logo encaminhei a conversa para este particular, ficando a saber que Manuel Moya não era apenas o homem que colocava na sua língua-mãe as palavras do príncipe dos poetas, mas também seu devoto estudioso, logo um poço de sabedoria no que ao maior poeta do século Vinte (e quiçá de todos os tempos) diz respeito.
Umas vezes, a conversa fluía como se fora um rio correndo mansamente e, na placidez das águas, pudéssemos descortinar o génio do homem que persigo e me persegue, outras, qual curso de águas revoltosas, atropelávamos a palração com receio de nos esquecermos do que mais adiante devíamos dizer.
O que é certo é que desaguámos numa dúvida que há muito me persegue: como seria a voz de Fernando Pessoa?
Quando o poeta morreu em 1935, já havia rádio e cinema sonoro. Até existe dele um pequeníssimo filme, mas da sua voz nem novas, nem achadas.
Sabemos quase tudo acerca dos seus hábitos. Que escrevia desalmadamente e que bebia quase nas mesmas proporções. Que vestia de modo tradicional e conservador e até com alguma falta de gosto. Que morava sozinho em quartos alugados um pouco por toda a cidade. Que trabalhava na baixa. Que passava muito tempo no Abel, no Martinho ou na Brasileira. Que tinha um andar peculiar. Que caminhava com um pé no passeio outro na calçada, como forma de descrever uma certa forma de andar de quem está (ridiculamente) apaixonado, aquando do romance com Ofélia. Mas do seu timbre vocal…nada!
Manuel também se admirava com este particular. Disse-lhe que conhecia uma amiga, neta do último patrão do poeta na rua da Prata, e que, por sua vez, o seu pai fora amigo e confidente do génio da palavra. Que quando a encontro a metralho até à insensatez com perguntas sobre os detalhes da vida do poeta.
Quiseram os deuses que na passada semana em Castro Verde desse de caras com a Ana Moitinho, minha privilegiada interlocutora no que a Pessoa diz respeito.
Logo, logo a conversa ganhou laivos pessoanos e a inevitável pergunta soltou-se-me dos lábios.
— Tu por acaso não saberás como era a voz de Fernando Pessoa?
Que não. Que quem o poderia saber há muito que partiu, mas que agora também ela ficava curiosa em relação a esse particular.
E lá se foi a minha réstia de esperança em saber qual seria o timbre da voz do grande poeta.
Posso deduzir que não teria nenhuma singularidade, caso contrário já o saberíamos nem que fosse por escritos de outros seus contemporâneos.
Por mim, gosto de pensar que era redonda, grave, pausada e sentida.
Eu, que lhe dou voz e o levo de palco em palco, gosto de pensar que a minha poderia ser a sua.

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